O primeiro-damismo e a desprofissionalização como barreiras na consolidação do SUAS

Por  Tatiana Borges; Aline Morais; Lívia de Paula; Rozana Fonseca e Thaís Gomes Apesar de estar reconhecida enquanto política pública na Constituição Federal de 1988, a Assistência Social tardiamente passou a se constituir como direito social e dever do Estado, já que o seu histórico é fortemente marcado pela caridade, filantropia e voluntariado, ou melhor, é o histórico do ‘não direito’, do favor. É possível afirmar que foi com a implantação do SUAS, através da PNAS de 2004, que ocorreu um salto na profissionalização da assistência social, ou seja, contrapondo as práticas emergenciais de compaixão, de improviso e personalismos,  é o arcabouço normativo dos últimos 10 anos da política de assistência social que reforça ou exige a presença de equipes de referência interdisciplinares constituídas por servidores públicos para a intervenção no conjunto de expressões das desigualdades sociais, através de serviços e benefícios socioassistenciais. Dito de outra forma, o reconhecimento, através de ordenamentos institucionais e direcionamentos políticos, de que o atendimento com dignidade prestado à população exige condições de trabalho e profissionais qualificados nas dimensões teórico-metodológica, ético-política e técnico-operativa é recente. Assim como é novo o tratamento da Assistência Social como responsabilidade estatal, expressada através de seguranças indispensáveis ao desenvolvimento pleno dos cidadãos com a garantia de direitos e com o envolvimento efetivo de todas as esferas de governo. Muito embora este entendimento seja fruto de estudos muito anteriores ao SUAS, de embates e lutas históricas para o reconhecimento da política de Assistência Social como direito e de militância política de diversos segmentos da sociedade, bem como de profissionais, com destaque aos assistentes sociais, o movimento para a implantação deste sistema é ainda incipiente, pois temos mais um modelo do que um sistema propriamente instalado, o que não invalida, de forma alguma, os avanços reais conquistados. Avanços oriundos especialmente dos movimentos organizados de trabalhadoras/es e de usuários, seja na militância diária em seus equipamentos de trabalho ou em fóruns, grupos e conselhos destinados à discussões, deliberações e construções da política. O avanço do SUAS – mesmo que não esteja nivelado, pois a cobertura para os riscos sociais não é universalizada e há um descompasso entre as formas e o tempo histórico de incorporação desta política pela união, estados e municípios – é inegável, principalmente, pelo potencial, já demonstrado pelas pesquisas e pelos indicadores existentes, de impactar a existência de grupos de pessoas, atuando na proteção a vida, na prevenção da incidência de riscos sociais, na identificação e superação de desproteções sociais e na redução de danos. Ainda assim, o desafio cotidiano que nós, das diversas categorias profissionais – que hoje, graças ao conjunto normativo do SUAS, compõem a política de assistência social – enfrentamos é superar a tradição de práticas assistencialistas pautadas sempre pelo controle e adestramento das famílias e pela criminalização da pobreza como forma de manter “a ordem e o progresso” do país, bem como o poder sobre os pobres, tratando os como desvalidos, carentes e não como cidadãos ativos de direitos. Considerando que o primeiro-damismo é uma realidade em muitos municípios, fica mais evidente a necessidade de pautarmos criticamente este cenário, uma vez que agora há uma representação emblemática e carregada de retrocessos. O quanto o primeiro-damismo tem emperrado a consolidação no SUAS? Valeria um estudo, porque sabemos que ainda há uma distância entre a legislação e o modo como a Assistência Social é vista pela população, pelos seus dirigentes e gestores municipais. O que sabemos é que, em muitos municípios a realidade da política de assistência social é permeada por ações de cunho clientelista que se convertem em moeda de troca nos acordos político-partidários entre prefeitos e vereadores para garantir votos da população. A incidência destas práticas na política de assistência social culmina numa desarticulação e fragmentação da mesma, numa sobreposição de propostas, sem considerar o que já existe no SUAS, reduzindo as ações à ajudas e concessões pontuais da primeira-dama. Nós, profissionais que compomos o SUAS e que defendemos este modelo de política pública, trabalhamos em uma direção que tem o Estado como principal responsável pelo bem-estar social e assim tendo como competência a promoção da proteção social que, no âmbito do SUAS, se materializa por meio dos serviços e benefícios socioassistenciais. Nesta direção o Estado atua como agente executivo (PAIF e PAEFI, programas e benefícios), agente regulador (dos serviços socioassistenciais prestados por entidades e organizações sociais) e agente de defesa de direitos e da participação social e esta direção, que preza a assistência como um direito e não como uma benesse, nos faz posicionarmos contrárias/os às propostas que venham reforçar o primeiro-damismo, estatuto que representa tudo aquilo que procuramos romper, ou seja, com o clientelismo, com o cerceamento de famílias e com o  uso das pessoas que necessitam da assistência social para a promoção da imagem do político. O primeiro-damismo, a nosso ver, é a caricatura da negação do direito, uma vez que simboliza, de forma bastante clara, o lugar que governos baseados em assistencialismo reservam à população usuária do SUAS:  o lugar de quem deve agradecer ao político pela sua bondade, por sua benevolência. Por saber que nós, trabalhadoras/es do SUAS, nos constituímos como a “tecnologia básica” deste sistema, uma vez que “a mediação principal é o próprio profissional” (BRASIL, 2008), não podemos nos calar, pois o trabalho social que realizamos exige conhecimento, formação técnica e perfil e não é possível que para um cargo de condução de uma política pública o critério seja o casamento e não o currículo profissional ou concurso público. A qualificação do trabalho social com famílias é um grande marco na implantação do SUAS e em uma de suas dimensões há um conjunto de atribuições técnicas/os, que compõem as equipes de referência dos serviço socioassistenciais. Entre estas atribuições está o acompanhamento às famílias que se encontram em situação de vulnerabilidade e/ou risco social decorrente, dentre outros fatores, da precariedade de renda. Assim, as famílias beneficiárias de programas de transferência de renda são prioritárias para o acompanhamento social que se configura como a oferta de um serviço e não uma exigência ou

Primeiro-damismo: da desesperança à consciência da dor e alegria de se tornar cidadã

Tenho sentido o peso e a dor advindos do pouco de cidadania que sou capaz de exercer num País onde direitos sociais são tratados com descaso e instabilidade sob o discurso estólido e perverso de que são os responsáveis por desequilíbrios no orçamento público – porque não dizer que são tratados com violência institucional!  Como ficar indiferente a um processo onde tentam colocar, mais uma vez, a culpa nos pobres? como ficar indiferente num processo onde se legitima a corrupção daqueles que não sabem o que é ficar na fila do SUS, na fila do Cadastro Único, na escola com uma sala onde a temperatura chega a 36 graus, tendo mais de 50 alunos, onde caberia 30? E o que dizer da escória que embolsa o dinheiro público destinado à merenda escolar? A humilhação social deita e acorda com essa gente que eles insistem em desqualificar ao oferecê-los, sob a égide da bondade e da benemerência, o trabalho voluntário. O trabalho pautado no discurso romanceado de criança feliz. Um mero engodo para que estas crianças não sintam na pele a dor e a alegria de serem gente; de pertencerem ao mundo e constatarem que o mundo também as pertencem! Só vão sentir a dor de serem ‘ralé’, a dor por nunca serem cidadãs de bem o suficiente para agradecerem pela bondade da primeira-dama que se esforça num trabalho voluntário para salvá-las apontando, como única possibilidade, uma estética burguesa. Notícias como essa acima, que evidenciam esse ranço ainda tão dominante na nossa cultura, me trazem uma desesperança muito grande quanto as políticas sociais, e questiono o quanto podemos contribuir, de fato, nas políticas públicas. Apesar da desesperança bater (quase sempre 🙁 ), eu tenho ciência que sou uma cidadã/profissional muito melhor depois que ingressei no SUAS, e que há avanços sólidos na assistência social. Por isso, hoje, mesmo constatando que a consciência crítica também traz sofrimento, eu só quero confiar que terei coragem para continuar desafiando as leis que regem a invisibilidade ou manutenção da desigualdade social, porque como dizia o saudoso Marcus Vinicius, temos um único problema: a desigualdade social. E na rotina do trabalho nas políticas sociais, sabe-se que ela é a gênese de tantos outros. Não temerei a alegria de me sentir pertencente ao mundo, assim como não temerei as dores no árduo trabalho de transformação das relações que o fazem e que, consequentemente, me fazem!