Terapia Ocupacional, o social e a Assistência Social

Por Aline Morais Para iniciar, acredito que se faz necessário apresentar a Terapia Ocupacional no Campo Social, pressupondo que para alguns colegas eu não esteja trazendo nenhuma novidade. Contudo, acredito que para muitos outros profissionais seja pertinente evidenciar alguns caminhos traçados pela nossa atuação específica dentro deste campo. Comecemos com uma definição clássica da Terapia Ocupacional: um campo de conhecimento e intervenção em saúde, em educação e na ação social, que reúne tecnologias orientadas para a emancipação e a autonomia de pessoas que, por razões ligadas a problemáticas específicas (físicas, sensoriais, psicológicas, mentais e/ou sociais), apresentam, temporária ou definitivamente,dificuldades de inserção e participação na vida social. Fonte: Crefito3 Desde a década de 70, os terapeutas ocupacionais atuam no que se chama de “social”, contudo numa lógica histórica de inserção nas instituições totais (FEBEMS, asilos). Associados aos processos e movimentos de redemocratização do Brasil, os quais certamente influenciaram outras profissões, os terapeutas ocupacionais começaram a questionar o seu papel de “mantenedores da ordem institucional”. Interrogavam se realmente estavam contribuindo com o bem-estar dos sujeitos, ou apenas reproduzindo as lógicas institucionais segregatórias.  Ainda, com o aumento da pobreza e da desigualdade social, os terapeutas ocupacionais, que até então estavam mais ligados às problemáticas de saúde, passam a perceber outras demandas para a profissão. Além disso, inicia-se o questionamento por parte dos terapeutas ocupacionais acerca do papel político do técnico, influenciados por Paulo Freire, Franco Basaglia, Gramsci, Foucault, Robert Castel, entre outros, que criticavam e apontavam para a “medicalização dos problemas sociais”. Assim, após diversos processos históricos, políticos e sociais, a Terapia Ocupacional Social vem se constituindo com base em alguns princípios: o adoecimento como processo também social (crítica ao modelo biomédico), deslocamento do setting terapêutico para o território, descentramento do saber técnico ou individualizado para compreensão das demandas e saberes coletivos e o conceito de atividade como algo a ser construído a partir da alteridade (conceito emprestado da antropologia). No Campo Social, entendido como esfera interdisciplinar mais ampla, há diversos núcleos de atuação da Terapia Ocupacional, tais como o da educação, da justiça, da cultura e da assistência social (MALFITANO, 2005). Assim, a Terapia Ocupacional Social, não trata exclusivamente da atuação na Assistência Social, mas tem ofertado subsídios para discuti-la, na medida em que não parte dos referenciais de saúde, mas sociológicos, antropológicos e outros. Não posso deixar de me referir ao Laboratório Metuia[1], berço da Terapia Ocupacional no Campo Social, do qual pude fazer parte durante um período de minha formação e tem protagonizado ações de extensão universitária, pesquisa e formação neste campo. Graças à presença (e luta) dos terapeutas ocupacionais nas conferências e espaços participativos do SUAS, sobretudo no Encontro Nacional dos Trabalhados do SUAS em Brasília, em março de 2011, nossa profissão foi reconhecida como categoria que pode compor as equipes de referência e gestão dos serviços socioassistenciais, consolidada por meio da resolução n. 17 do CNAS/2011. Foi um grande passo, contudo, ainda temos os seguintes desafios: Conquistar cargos efetivos e concursos específicos para terapeutas ocupacionais no SUAS; Garantir a presença de disciplinas e estágios das graduações que oferte maior preparo para atuação desses profissionais no SUAS; Divulgar e promover as nossas possibilidades de atuação na Assistência Social. Para quem se interessar, há alguns materiais complementares que já foram divulgados aqui no Blog no Post: Terapia Ocupacional no SUAS. Optei correr o risco de ser redundante para quem já conhece essa história, para fazer uma apresentação bem resumida àqueles que ainda não nos conhecem como profissão. Compartilhando aqui uma experiência pessoal, que ainda trata dos nossos desafios, quando participei da X Conferência Estadual de Assistência Social, enquanto delegada, em uma discussão em subgrupo, uma colega assistente social questionou se eu compunha a equipe de referência, se era concursada e se poderia registrar ações técnicas no prontuário SUAS, insinuando que as respostas seriam negativas. Mediante tais questionamentos, a respondi, embasada na resolução n. 17 do CNAS/2011 e afirmando que sim, como qualquer profissional da equipe de referência. Para me reconfortar dessa situação, escutei uma fala de um professor Marcelo Gallo, (professor da Unesp Franca e graduado em Serviço Social) em uma de minhas formações do Capacita SUAS, em que ele alegou que, como assistente social ele poderia afirmar: assistentes sociais, a PNAS não é de vocês! Certamente, vindo de um colega assistente social, me senti representada! Diante disso, cabe a nós terapeutas ocupacionais, mostrar a que viemos. E aos colegas e gestores, também se informarem sobre as demais profissões previstas na NOB/RH, de modo que os serviços socioassistenciais possam contar com olhares profissionais diversos e complementares, não concorrentes! Para finalizar, àqueles que se interessarem em conhecer as origens da terapia ocupacional, deixo aqui a minha sugestão de assistirem ao filme brasileiro “Nise – O coração da loucura”. Ele ajuda a compreender as nossas bases para o uso da atividade, não apenas para “ocupar” ou manter a “ordem”, mas como forma de questioná-la, estabelecendo uma ordem própria (através do que chamamos de autonomia, assunto o qual pretendo discutir em outro momento) e produção de sentido. Assim, as dimensões da intervenção do terapeuta ocupacional devem ser a ampliação e o fortalecimento das redes sociais, bem como a expansão do repertório de atividades cotidianas. O objetivo final é aumentar a participação cívica e social dos sujeitos (COSTA, 2016). Referências COSTA, L.A. A terapia ocupacional no contexto de expansão do sistema de proteção social. In: LOPES, R.E., MALFITANO, A.P.S. Terapia Ocupacional social: desenhos teóricos e contornos práticos. São Carlos: EdUFSCar, p.135-153, 2016. LOPES, R. E. et al. Terapia Ocupacional no campo so­cial no Brasil e na América Latina: panorama, tensões e reflexões a partir de práticas profissionais. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, São Carlos, v. 20, n. 1, p. 21-32, 2012. MALFITANO, A. P. S. Campos e núcleos de interven­ção na terapia ocupacional social. Revista de Terapia Ocu­pacional da USP, São Paulo, v. 16, n. 1, p. 1-8, 2005. [1] Grupo interinstitucional de estudos, pesquisa, formação e ações pela cidadania de crianças, adolescentes e adultos em processos de ruptura das redes sociais de suporte, sob os pressupostos

Você já foi picado pelo “bichinho” chamado Psicologia Social e Comunitária?

Por Lívia de Paula*    Em minha estreia¹ neste espaço, trouxe alguns questionamentos que sempre me acompanham no cotidiano de trabalho dentro da Política de Assistência Social. Tais questionamentos se referem a qual psicologia seria possível dentro deste campo de trabalho, a qual psicologia temos nos dedicado como trabalhadores do SUAS. Se estamos garantidos por lei dentro dos equipamentos da Assistência Social, estamos mais que convidados, estamos convocados a pensar como tem sido e como pode se dar nosso fazer junto às famílias. Assim, seja em um CRAS, CREAS ou demais equipamentos das proteções básica e especial, sempre haverá um profissional de Psicologia “fazendo” alguma coisa. E se já sabemos que não fazemos psicoterapia, mas estamos nestes locais fazendo alguma coisa, quero te perguntar: o que estamos fazendo? Já parou para pensar? Nosso “gueto” do SUAS sempre está a pontuar: nossa formação não nos preparou e talvez ainda não prepare nossos colegas estudantes para esta inserção na Assistência Social. Embora já existam disciplinas que abarcam a prática do psicólogo social em alguns cursos, a maioria ainda parece ter como foco a dobradinha “indivíduo – divã”. Mas, há algum tempo refletindo sobre isso, tal pontuação tem me incomodado. Claro, não há como negar que a maioria de nossas disciplinas possuem um viés clínico pautado no indivíduo e em sua psiquê. Mas, acredito que a maioria de nós tenha sim sido ao menos apresentado a disciplinas como: Dinâmica de Grupo e Instituições, Psicologia Social, Psicologia Comunitária, Saúde Coletiva, entre outras. Tais disciplinas me parecem essenciais para nortear nossa atuação, mesmo não abordando diretamente o funcionamento do SUAS e de seus equipamentos.  Será que, por não tratarem diretamente da Política de Assistência Social, acabamos nos esquecendo de seus ensinamentos? Além disso, creio que somos ou deveríamos ser profissionais que acreditam na possibilidade de transformação, de mudança das pessoas. E o mesmo não vale para nós? Se não me sinto preparado para atuar no campo, o que estou fazendo para mudar isso? Lembro da minha formação, da primeira aula como caloura de Psicologia: Dinâmica de Grupos. Não sei bem ao certo, mas talvez ali eu já tenha sido picada por este bichinho chamado Psicologia Social e Comunitária. Lembro-me afetivamente da professora Eloísa Borges, e a vocês peço licença para mencioná-la e agradecer pela delicadeza de nos emprestar os seus olhos para que pudéssemos desenvolver os nossos. Vieram outras disciplinas e estágios, onde pude exercitar o fazer da Psicologia junto a grupos e minorias. E aí, pronto. Me descobri encantada por este universo que hoje conduz minha prática no SUAS. Tive outros encantamentos durante a graduação. E como já pontuei o viés clínico tão enfatizado pejorativamente por nós do SUAS, é claro que ele também foi marcante em minha formação. E aí, no sétimo período, me vi flertando com a Psicologia Fenomenológico-Existencial. Entender o ser humano sem noções pré-concebidas, a partir do fenômeno, entendido como aquilo que se revela, que se mostra, isto é, “aquilo que aparece”. Esta é a proposta da fenomenologia. Você deve estar se perguntando: cabe no contexto do SUAS? A meu ver, O SUAS nos convida o tempo todo para esta postura fora da caixinha dos rótulos: acolher o que aparece, o inusitado e nos reinventar, sem roteiro predefinido construir intervenções a partir do que nos é dado pelos usuários. Por isso, mais que olhar pejorativamente para nosso viés clínico, proponho que prestemos atenção naquilo que esse viés pode trazer de contribuição para o nosso fazer. Não se trata de ser psicoterapeuta no contexto do SUAS, mas de refletirmos sobre como nossa formação clínica pode, conjugada aos ensinamentos da Psicologia Social, contribuir para a construção/invenção da nossa prática. Creio que seja necessária uma última reflexão. Uma reflexão mais individual e afetiva: você já se perguntou se seu coração bate pelo social? Pois não bastam as capacitações, cursos e livros se não tivermos prazer naquilo que fazemos. Se o nosso coração bate pelo social, deixemo-nos “picar” todos os dias pela Psicologia Social. E sigamos com a luta, lembrando da famosa e até batida frase de Jean-Paul Sartre, filósofo existencialista: “Não importa o que fizeram de mim, o que importa é o que eu faço com o que fizeram de mim.” Estamos no SUAS. E aí, o que vamos fazer com isso? Texto 1  [1]: Compartilhando vivências: vamos falar sobre nossa atuação na Proteção Social Especial? *Lívia de Paula – Graduada em Psicologia pela Universidade do Estado de Minas Gerais (2003). Possui formação em Psicoterapia Existencial e especialização em Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes. Foi membro do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (Gestões 2010-2012 e 2012 -2014). Atua na área de Assistência Social desde 2006. Atualmente é técnica de referência do PAEFI/CREAS de Itaúna/MG, psicóloga clínica, coordenadora do GT SUAS da Subsede Centro Oeste do CRP – MG e membro do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher (Gestão 2016-2018). Contato: liviadepaulla@yahoo.com.br

Diálogos e perspectivas possíveis da Assistência Social com/e da Terapia Ocupacional

Hoje é dia de receber Aline Morais, que será colaboradora do Blog para abordar a atuação do profissional com formação em Terapia Ocupacional no SUAS. Seja muito bem-vinda, Aline. Estou muito feliz em ampliar esse espaço com suas reflexões e proposições! Este espaço também é seu e de todas/os Terapeutas Ocupacionais <3 Por Aline Morais * Estreio esse espaço privilegiado de “compartilhares” com uma grande responsabilidade: representar os terapeutas ocupacionais do SUAS. Represento porque atualmente trabalho no CRAS de Patrocínio Paulista, além disso, tenho me dedicado, desde o término da graduação ao Campo Social da Terapia Ocupacional, seja por meio da atuação prática (nas medidas socioeducativas), seja na academia (como docente, supervisora de estágio e mestranda). Sendo assim, espero dialogar, refletir, provocar questões pertinentes à Assistência Social, como um todo, atreladas às especificidades da Terapia Ocupacional. Contudo, além de mim, sei que há colegas terapeutas ocupacionais trabalhando no SUAS, com os quais espero contar para compor este diálogo que iniciamos neste importante espaço, concedido pela Rozana Fonseca (obrigada!). Imagino que muitos colegas ainda não conheçam as possibilidades de nossa atuação na Assistência Social. Há aqueles que pensam que somos uma profissão da saúde ou recente, em ascendência. O primeiro curso de Terapia Ocupacional surge no Brasil em meados da década de 1950, e a sua atuação no campo social, nos anos 70, quando começam a atuar em presídios, FEBEMs e programas comunitários. Ou seja, estamos há um tempo significativo na construção de um saber específico, sobre o qual pretendo contar a vocês durante nossas postagens. Pretendo me debruçar sobre as especificidades da profissão, contudo, além de TO, também sou profissional do SUAS e, com certeza, teremos inquietações similares, advindas da Assistência Social como um todo. Dentre elas, as discussões que inferem que o objeto de intervenção das outras áreas (como a da saúde) é mais claro, mais concreto, do que o da Assistência Social. Quantas vezes nos deparamos com essa discussão? Para nosso conforto, o novo documento do MDS, sobre o Trabalho Social com Famílias[1], aborda o fato de nosso trabalho ser de natureza relacional, que requer necessariamente o estabelecimento de uma relação entre profissional e usuário. E então, nos questionamos: qual o limite dessa relação? Queremos nos relacionar? Ou seja, a cada afirmação, um novo questionamento. E penso que é isso que nos move, enquanto profissionais que fazem a diferença no seu cotidiano de trabalho. A autonomia é um conceito que se coloca recorrentemente como objetivo de intervenção a ser alcançado, tanto pela Assistência Social quanto pela Terapia Ocupacional. Porém, como tal conceito se efetiva na prática, no relacional? Percebo que, facilmente entramos em contradição, enquanto profissionais, e seguimos no caminho contrário (com a melhor das intenções!). Sendo assim, se no cotidiano de trabalho não há um exercício de reflexão, seguido de um posicionamento, quase sempre, contra-hegemônico (crítico à realidade, ao senso comum e ao tradicional), facilmente reproduzimos aquilo que, na teoria, criticamos. Em alguns momentos formativos dos quais participei, discute-se muito que as atividades (artesanais e manuais) na Assistência Social devem sempre ter um objetivo, um propósito. Para os terapeutas ocupacionais isso sempre foi imperativo, plenamente discutido na graduação do curso, inspirada em uma terapeuta ocupacional[2] que dizia que a atividade naturalmente terapêutica (ou benéfica) seria um mito. Mito este relacionado a uma visão ultrapassada de que o trabalho dignifica.  É importante considerar que ele pode também gerar adoecimentos. Assim, a execução de uma atividade e o alcance de seus objetivos depende necessariamente do recurso humano. Uma mesma atividade pode ser utilizada para propósitos totalmente opostos.  Outra reflexão que tem se mostrado importante, é discutir sobre as formas de inserção dos trabalhadores do SUAS nos serviços. Sou concursada para o cargo de terapeuta ocupacional CRAS, contudo, a abertura de cargos específicos dessa forma é raro, senão inexistente. Portanto, há muitos pontos que pretendo levantar neste espaço, enquanto terapeuta ocupacional e trabalhadora do SUAS. Busquei expor aqui apenas uma prévia desse desafio enorme de transpor o entendimento analítico dos referenciais teóricos rumo às estratégias de intervenção prática e técnico-operacional. [1] BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Fundamentos ético-políticos e rumos teórico-metodológicos para fortalecer o Trabalho Social com Famílias na Política Nacional de Assistência Social. Brasília, 2016. [2] NASCIMENTO, B. A. O mito da atividade terapêutica. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, v.1, n.1, p. 17-21, 1990. *Aline Cristina de Morais – Graduada em Terapia Ocupacional pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar (2008), Mestre em Terapia Ocupacional pelo Programa de Pós-Graduação em Terapia Ocupacional da UFSCar – PPGTO (2013). Atuou no Serviço de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto (2008 a 2011) em São Carlos/SP. Foi professora substituta no Departamento de Terapia Ocupacional da UFSCar (2013-2014) e docente adjunta do curso de Terapia Ocupacional do Centro Universitário de Araraquara – UNIARA (2013-2015). Atualmente é Terapeuta Ocupacional do CRAS de Patrocínio Paulista/SP, membro do Conselho Municipal de Assistência Social de Patrocínio Paulista/SP (atual gestão) e membro do Grupo de Estudos e Capacitação Continuada de Trabalhadores do SUAS – GECCATS.