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Escuta especializada na Assistência Social: críticas e alguns apontamentos

Texto[i] com as questões discutidas na LIVE Escuta Protegida – para assistir clique aqui

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.        

Sobre a Lei 13.431/2017 (Regulamentada pelo Decreto nº 9.603/2018)

A lei da escuta protegida foi aprovada sem alcançar um patamar de consenso aceitável, ela é decorrente do PL nº 3792, de 2015. É sabido que processos legislativos que visam regulamentar políticas públicas, cujas ações perpassam por diferentes órgãos devido a exigência de articulação intersetorial porque deve-se considerar os princípios de integralidade e prioridade absoluta na proteção à criança e ao adolescente, são passíveis de tensões e disputas para tomada de ordenamentos teóricos e metodológicos diversos e até contraditórios no que se refere ao objetivo de proteção à infância.

Não é novidade para os órgãos citados nos respectivos marcos legais que a legislação brasileira, no que se refere a proteção integral à criança e ao adolescente, tem notoriedade e reconhecimento nacional e internacional. Contudo, os campos de proteção, promoção e responsabilização do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA) carecem de qualificação das suas ações. Todos eles. Se tem um eixo em que todos esses órgãos se igualam é na ineficiência de implementação de políticas de educação permanente para aprimoramento das ações!  

É válido pontuar que ter conhecimento e posicionamento crítico – e até contrário – sobre os recentes marcos legais não deve ser compreendido como desconsideração aos esforços de entidades, sociedade civil e governo para fins de proteção integral à criança e ao adolescente. A questão é que a lei direciona determinadas ações e algumas ficarão de fora porque serão incompatíveis ou demasiadamente contraditórias. A lei traduz escolhas bem conscientes que reverberam visão de família, infância e mundo. 

Como trabalhadoras e trabalhadores dos órgãos de proteção nunca deixem de perguntar, a quem e a quais interesses atende determinada lei – ou até mais importante, como os legisladores e operadores das leis têm tratado as demais áreas que visam proteger e garantir o pleno desenvolvimento de crianças e adolescentes? Será compatível reforçar leis que rezam sobre assuntos tratados há 30 anos, mas que não saíram do papel por falta de destinação adequada de recursos orçamentários, falta de implementação de políticas de educação permanente e de compromisso do estado com concursos públicos? Descompromisso público que será agravado com a emenda constitucional 95, cuja aprovação e vigência são escárnios para o campo de ações de prevenção às violências contra crianças e adolescentes.

Resgato aqui a distância entre a legislação e ao implementado na prática porque quero pontuar que a lei 13.431/2017 sofreu e sofre várias críticas porque a constituição federal, especialmente no artigo que abre este texto e o Estatuto da Criança e do Adolescente já propõem ações integradas, estas orientadas pelo princípio da prioridade absoluta como dever do Estado. A lei foi intensamente tecida e aprovada por pressão de Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) – sabemos que uma OSC com estatura e respeitabilidade internacional pode facilmente imperar seu interesse junto ao ordenamento do Estado. Principalmente quando a conjuntura estatal impõe uma notória fragilidade nas instituições de controle social e de participação popular. Assim, é válido resgatar que os espaços que visam alcançar legislações e políticas públicas que venham, de fato, garantir direitos e beneficiar milhões de interessados, precisam se valer da prerrogativa democrática do amplo debate.   

Relação SUAS e órgãos de investigação e responsabilização

Faltou debate na elaboração e aprovação da lei 13.431/2017.  Faltou tanto que o Decreto 9.063/2018 que tinha o objetivo de aprová-la, precisou vir com uma redação retificadora. Redação que não muda substancialmente o rumo das críticas, mas traz esclarecimentos importantes, como quando descreve melhor sobre do que se trata a escuta especializada. Para os operadores dos órgãos de proteção, estes que, não raras vezes,  sofrem pressão e ações de cunho autoritários por órgãos de investigação e responsabilização, é fundamental ter ampliado a diferenciação de escuta especializada do procedimento de oitiva denominado depoimento especial, possibilitando maior segurança para um posicionamento ético-político e técnico frente às diversas solicitações equivocadas.  

Depoimento especial

Art. 22. O depoimento especial é o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária com a finalidade de produção de provas.

Art. 25. O depoimento especial será regido por protocolo de oitiva. (lei 13.431/2017)

Não é objetivo deste texto tratar sobre este procedimento, mas é fundamental que este conceito e prática não sejam confundidos com escuta especializada, como exposto acima. Pontuo que é relevante acompanhar as disputas institucionais e técnicas em relação ao procedimento do depoimento especial realizado hoje pelas nossas colegas psicólogas e assistentes sociais nos tribunais e que tem recebido significativas críticas e sendo pauta nos conselhos de classe e de outras instituições e associações de trabalhadores para romper com a lógica do ônus da prova atribuído à criança e ao adolescente e que atribuem às profissionais treinados com técnicas para fazer emergir a verdade desses sujeitos que estão em tenra idade – como se isso fosse garantido! Para aprofundar sobre a polêmica do depoimento especial, sugiro o evento realizado pelo Conselho Regional de Psicologia – Minas Gerais (CRP-MG): “Depoimento especial: um impasse entre a escuta psicológica e a inquirição, confiram na íntegra aqui: https://www.facebook.com/watch/live/?v=1506100502793068&ref=watch_permalink.

Vale também conhecer a Recomendação nº 33 do CNJ de 30 de novembro de 2010 – Recomenda aos Tribunais a criação de serviços especializados para escuta de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência nos processos judiciais. Depoimento especial.

Conheça o  Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense

Escuta especializada

Art. 7º Os órgãos, os programas, os serviços e os equipamentos das políticas setoriais que integram os eixos de promoção, controle e defesa dos direitos da criança e do adolescente compõem o sistema de garantia de direitos e são responsáveis pela detecção dos sinais de violência. Decreto nº 9.603/2018

…..Art. 19. A escuta especializada é o procedimento realizado pelos órgãos da rede de proteção nos campos da educação, da saúde, da assistência social, da segurança pública e dos direitos humanos, com o objetivo de assegurar o acompanhamento da vítima ou da testemunha de violência, para a superação das consequências da violação sofrida, limitado ao estritamente necessário para o cumprimento da finalidade de proteção social e de provimento de cuidados.

         § 4º A escuta especializada não tem o escopo de produzir prova para o processo de investigação e de responsabilização, e fica limitada estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade de proteção social e de provimento de cuidados.

     Art. 20. A escuta especializada será realizada por profissional capacitado conforme o disposto no art. 27.

Art. 27. Os profissionais do sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência participarão de cursos de capacitação para o desempenho adequado das funções previstas neste Decreto, respeitada a disponibilidade orçamentária e financeira dos órgãos envolvidos.

     Parágrafo único. O Poder Público criará matriz intersetorial de capacitação para os profissionais de que trata este Decreto, considerados os documentos e os atos normativos de referência dos órgãos envolvidos.

Se a escuta especializada deve ter a “finalidade de proteção social e de provimento de cuidados” as profissionais da assistência social devem se ater ao preconizado nos objetivos dos serviços socioassistenciais, especialmente ao Serviço de Proteção e Atendimento Especializado à Família e Indivíduo – PAEFI.

Não há mudança substancial para o campo da assistência social, contudo as mudanças mais significativas nas instituições mais “afetadas” como por exemplo a educação e os órgãos de investigação e responsabilização, modificam as rotinas dos serviços socioassistenciais, mesmo que elas sejam informais, sem fluxos estabelecidos e compartilhados.

A grande mudança estabelecida para a rede de proteção é sobre o modo de acolher, registrar e encaminhar o relato espontâneo e o que será feito com o que for cientificado. Antes de seguir, não é demais reforçar que mais uma vez a lei fica distante da realidade, muitos profissionais não recebem capacitação permanente e é muito comum que muitos ficam receosos, inseguros para realizar a escuta de uma criança ou de um adolescente vítima ou testemunha de violência.

A questão é que não é somente agora que não se pode atuar sem capacitação, principalmente quanto a temas complexos. Educação Permanente é um dos eixos estruturantes de toda política pública, porém, mais uma vez é preciso sublinhar o quão aquém das normativas as políticas caminham na prática. Mais uma vez: por que será que OSC e Estado não destinam esforços para cumprir o já estabelecido?

Feito esta consideração sobre a capacitação, é possível avançar quanto ao modo de escutar o relato espontâneo. Recomendo a leitura dos materiais disponibilizados abaixo, mas para ser direta e conseguir falar com profissionais de diferentes formações quero que vocês registrem as seguintes palavras: espanto, curiosidade, ameaça e naturalização. A intenção não é descrever técnicas de entrevista neste texto, mas quero enfatizar que para escutar, deve-se perguntar o mínimo possível.

E como saber se está escutando bem? Avalie seu grau de espanto e o que você faz com ele; não pergunte por curiosidade ou para conseguir nomes dos envolvidos (lembre -se, você não é uma investigadora); ameaças aparecem sutilmente, portanto reflita como você se posiciona e faz perguntas recorrentes –  crianças e adolescentes, em fases muito peculiares de desenvolvimento biopsicossocial, podem interpretar uma insistência como ameaça, por exemplo. Por último, não naturalize ou subestime os fatos, ao decidir contar uma vivência/fato de magnitude que envolva pessoas próximas e muitas vezes os próprios cuidadores, a criança ou adolescente está em estado de peculiar economia/carga psíquica e com expectativas bem complexas, por isso é válido mencionar: se o que está sendo escutado parece pouco importante, considere o significado de todo o contexto para o sujeito e não para quem escuta.

Portanto, entre outros elementos, é muito importante que seja uma acolhida para proteger a criança o adolescente e não um momento para o interlocutor satisfazer as suas curiosidades frente ao fato.

O que fazer com o que foi relatado?

O procedimento será diferente em cada instituição e dependerá do fluxo e protocolos estabelecidos. Recomendo mais uma vez que você consulte os materiais nas referências –  aqui estou enfatizando, sumariamente, a atuação dos profissionais da assistência social.

Explique a criança ou adolescente sobre os próximos passos, e neste momento, se for um profissional que não trabalha diretamente com a escuta especializada (por exemplo, é orientador social do SCFV) um ou mais profissional da equipe deve ser informado para que tome os procedimentos de atendimentos aos responsáveis e  encaminhamentos.

O percurso das situações deve ser estabelecido a partir da implantação da Comissão de Gestores Colegiados como preconiza a referida lei. O Comitê de gestão colegiada da rede  de cuidado e de proteção social das crianças e dos adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, com a finalidade de articular, mobilizar, planejar, acompanhar e avaliar as ações da rede intersetorial, além de colaborar para a definição dos fluxos de atendimento e o aprimoramento da integração do referido comitê – Veja este exemplo: Resolução 006/2020, CMDCA [ii]– Dispõe sobre a criação do Comitê de Gestão Colegiada da Rede de Cuidado e de Proteção Social de Crianças e Adolescentes Vítimas ou Testemunhas de Violência e dá outras providências.

Sem uma comissão que funcione, de fato, trabalhadores continuarão inseguros e não é exagero inferir que crianças e adolescentes continuarão sendo revitimizadas, portanto, é fundamental que cada localidade crie, articuladamente, caminhos para o atendimento com vista à proteção integral crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência.

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Sobre relatórios e compartilhamentos de informações

Sobre este assunto pretendo explanar detalhamento em um outro momento, aqui trago recortes das normativas que versam sobre estes procedimentos.

Art. 28. Será adotado modelo de registro de informações para compartilhamento do sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, que conterá, no mínimo:

     I – os dados pessoais da criança ou do adolescente;

     II – a descrição do atendimento;

     III – o relato espontâneo da criança ou do adolescente, quando houver; e

     IV – os encaminhamentos efetuados.

    Art. 29. O compartilhamento completo do registro de informações será realizado por meio de encaminhamento ao serviço, ao programa ou ao equipamento do sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, que acolherá, em seguida, a criança ou o adolescente vítima ou testemunha de violência.

     Art. 30. O compartilhamento de informações de que trata o art. 29 deverá primar pelo sigilo dos dados pessoais da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência.


[i] Texto elaborado em referência ao explanado na LIVE realizada no dia 15 de outubro de 2020 no página do BPS no Instagram @psicologianosuas sobre Escuta protegida: https://www.instagram.com/p/CGYpy2TlrW-/

[ii] https://leismunicipais.com.br/a/sc/p/porto-belo/resolucao/2020/1/6/resolucao-n-6-2020-dispoe-sobre-a-criacao-do-comite-de-gestao-colegiada-da-rede-de-cuidado-e-de-protecao-social-de-criancas-e-adolescentes-vitimas-ou-testemunhas-de-violencia-e-da-outras-providencia

Referências e sugestões de leituras

BRASIL. Lei nº 13.431. Estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Brasília, 04 de abril de 2017.

BRASIL. Decreto nº 9.603/2018. Regulamenta a Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência.

Parâmetros de atuação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) no sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência. Brasília, 2020

Parâmetros de escuta de crianças e adolescentes em situação de violência. 2017

SÃO PAULO, Secretaria Estadual de Desenvolvimento e Assistência Social. Portaria CIB/SP 19, de
11/12/2018. Disponível em:
https://www.desenvolvimentosocial.sp.gov.br/a2sitebox/arquivos/documentos/2455.pdf

Nota Técnica nº 02/2016/SNAS/MDS. Nota Técnica sobre a relação entre o Sistema Único de Assistência Social – SUAS e os órgãos do Sistema de Justiça

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