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A Psicologia no CREAS: os desafios da mudança de um paradigma


Por Lívia de Paula*

A questão da prática da (o) psicóloga (o) no SUAS, embora seja um assunto no qual já observamos muitos avanços, ainda causa dúvidas, inquietações e angústias para as (os) profissionais que atuam na Política de Assistência Social. Sobre esse tema, Rozana Fonseca escreveu dois textos riquíssimos há pouco tempo aqui no Blog. Sugiro a leitura: Atendimento psicossocial ou interdisciplinaridade na assistência social? e Abordagem psicossocial e a práxis na Assistência Social. Em um deles, ela trabalha as diferenças entre os termos interdisciplinaridade e psicossocial. É de suma importância para nós, profissionais do SUAS, compreendermos essas diferenças, para que possamos atuar em conformidade com aquilo que entende-se como essencial aos preceitos da Política de Assistência Social. No segundo texto, Rozana vai trazer o conceito de psicossocial como metodologia. Contidas no seu texto, estão referências bibliográficas preciosas sobre o assunto. Ela aponta também para a experiência da Saúde Mental no campo da Atenção Psicossocial, que muito pode nos auxiliar para a compreensão desta abordagem. São dois textos bastante completos sobre o tema, com os quais pretendo dialogar nesta minha contribuição.

O texto de hoje atende a solicitação de uma leitora deste espaço. Seu desejo é de ampliar sua compreensão acerca do atendimento psicossocial pela psicóloga (o) no CREAS. Sobre este tema, Pereira Junior (2014) conduziu sua pesquisa de mestrado que gerou um livro referenciado ao final deste texto e o qual sugiro para leitura. Nesta pesquisa, o autor investigou a atuação das (os) psicólogas (os) nos CREAS de quatro municípios da região metropolitana de Belo Horizonte, a partir de sua própria inserção em um destes equipamentos.

Pereira Junior (2014) aponta um aspecto sobre o qual tenho refletido bastante nestes anos de atuação no CREAS do meu município: a amplitude de abrangência do trabalho do CREAS, sobretudo do PAEFI, que convoca a (o) profissional a um imenso conjunto de conhecimentos necessários para a intervenção nas situações atendidas. “Apesar de estarem todas na categoria violações de direitos, […] cada uma dessas situações demandaria um embasamento teórico e metodológico próprio.” (PEREIRA JUNIOR, 2014, p. 61) Sob meu ponto de vista, esta é uma importante particularidade que perpassa a atuação da Psicologia no CREAS. O desafio de conhecer minimamente cada um dos públicos e das violações com as quais irá se deparar cotidianamente. Em que pese entendermos que o foco central é o trabalho com a família, para que este trabalho seja qualificado é primordial termos contato com o percurso histórico da defesa de direitos de cada público (criança/adolescente, mulher, idoso, pessoa com deficiência, público LGBTQI+, entre outros) e com as teorias e metodologias desenvolvidas no que concerne a cada um destes públicos. É, a meu ver, um dos primeiros quesitos sobre o qual a (o) profissional do CREAS precisará se debruçar. Quais os públicos que eu atendo? O que eu sei sobre eles? Antes, é claro, faz-se necessário que essa (e) colega conheça o que é o SUAS, as Proteções Sociais e o CREAS.

Outra questão abordada pelo mesmo autor é a demanda que chega até os CREAS de verificação e apuração de denúncias as mais diversas, o que produz atravessamentos de toda ordem no trabalho neste equipamento. Esta, talvez, seja a pauta mais difícil para nós técnicas (os) deste serviço. Seu enfrentamento não é simples, revela-se complexo e até ameaçador. No entanto, nosso desconhecimento quanto às diretrizes do SUAS pode contribuir para a perpetuação desta realidade. O trabalho psicossocial ofertado nos nossos equipamentos, embora atravessado por este tipo de demanda, não deve se omitir na sua função de promotor de direitos, de empoderamento e autonomia dos usuários frente à complexidade das violências por eles vivenciadas. Aqui no Blog, podem ser encontrados diversos textos que tratam dessa relação desafiadora com o Sistema de Garantia de Direitos – SGD. Eu mesma já escrevi alguns. Dê uma pesquisada, leia, se atualize sobre o assunto. Cotidianamente temos sido chamadas (os) a nos posicionar a esse respeito. Seja através do envio de relatórios, seja em reuniões com os profissionais dos órgãos de justiça. A clareza do que fazemos e dos objetivos do nosso trabalho é que nos trará a segurança necessária para esses momentos.

Além destas duas, muitas outras questões estão postas quando se trata da atuação da (o) psicóloga (o) no CREAS, mas sendo o intuito do Blog primar por textos mais curtos e simples, irei focar, daqui para frente, em uma última e crucial questão, que é discutida em diversos materiais que pesquisamos: a interdição da psicoterapia e a “obrigatoriedade” do trabalho psicossocial no espaço do SUAS e, consequentemente do CREAS. Não é uma questão nova, mas me interessa pensar hoje como isso chega para as (os) profissionais dos serviços. Sobre isso, o autor com o qual estamos dialogando até aqui vai dizer que no CREAS, não raro, a (o) psicóloga (o) é demandada, por diversos órgãos e até por outros equipamentos da Assistência Social, a avaliar o usuário sob o ponto de vista da presença ou não de um trauma e de seu tratamento, inclusive com a pressão e vigilância para obtenção de resultados rápidos e precisos. Eu mesma, enquanto profissional de CREAS, já recebi solicitações similares a essa. Fica clara a dificuldade que ainda se apresenta no que refere-se à atuação psi neste equipamento. Por se tratar de um espaço que atua com situações de violência, ainda se tem uma expectativa de que a Psicologia está ali para “tratar” dos aspectos subjetivos do ocorrido, mesmo que muitas vezes o discurso seja de que não é essa a demanda. Nunca é demais lembrar, como aponta o autor citado, que:

Devido a sua complexidade e transversalidade, a construção de uma metodologia de intervenção no CREAS demanda saberes de muitos campos de conhecimento, como a Psicologia, o Serviço Social, a Sociologia, a Ciência Política, a Pedagogia, o Direito, entre outros. (PEREIRA JUNIOR, 2014, p.85)

O autor aponta também que a noção tradicional do psiquismo encapsulado, que compreende o indivíduo separado da sociedade não abarca a atuação da (o) psicóloga (o) no SUAS e em outros contextos de atuação. Assim como Rozana Fonseca nos textos que citei no início desta colaboração, ele também irá se reportar às referências propostas por Eduardo Vasconcelos, no que concerne às abordagens alinhadas a metodologia psicossocial como possibilidade de intervenção no SUAS e no CREAS.

Para além de apontar a metodologia psicossocial como possibilidade de embasamento da prática no SUAS, Pereira Júnior (2014) vai problematizar a dita proibição da clínica tradicional nos espaços do SUAS, mencionando que embora esse seja um ponto importante levantado pelas normativas da Política de Assistência Social, não teve o aprofundamento devido, o que culminou numa confusão entre os termos psicoterapia, caráter terapêutico e práticas clínicas. Há uma convergência entre o referido autor e Marcos e Neves (2019). Estas autoras também citam a confusão entre os termos e trazem ainda outras provocações bastante interessantes. Afirmam que as normativas preocuparam-se mais em dizer o que (a) psicóloga (o) não deve fazer em detrimento daquilo que ela (e) deve fazer neste contexto de atuação. Questionam ainda se a prioridade ao atendimento grupal garantiria a mudança de paradigma – do sujeito encapsulado em seu psiquismo para o sujeito inserido e compreendido em seu contexto social.

Soam-me instigantes estes apontamentos das autoras, principalmente porque tenho me deparado com minhas inquietações a esse respeito de forma recorrente. Venho, aos poucos, desnaturalizando esta “proibição” – “não pode fazer clínica no SUAS” – para entender o que isso significa e qual a mensagem posta em frases como esta. Parece-me mais coerente que dialoguemos sobre como a (o) psicóloga (o) do SUAS e do CREAS olha para a desigualdade social, para seus impactos e atravessamentos na construção da subjetividade dos usuários que atende. A pessoa que você atende no CREAS está te contando qual história? O que está imbricado naquilo que ela te conta – você consegue ver o território, a comunidade em que ela está inserida e a nossa sociedade em seu relato? Penso serem fundamentais estas perguntas, pois sem a percepção de que somos seres sociais, qualquer grupo que seja proposto nos serviços, como nos provocaram as autoras, será formado apenas por uma soma de psiquismos encapsulados.

Olhando assim, fica evidente que abordar o trabalho da (o) psicóloga (o) no SUAS é abordar a necessidade de mudanças de paradigma na Psicologia. Para esta tarefa, é insuficiente dizer que não se pode fazer clínica. É essencial olhar para nossa formação. Tanto para a graduação em Psicologia, quanto para os espaços de educação permanente direcionados para as (os) profissionais do SUAS. O projeto alinhado com o compromisso social da Psicologia vem, cada dia mais, colocando esse assunto em voga. A (o) psicóloga (o) que atua no CREAS precisa beber dessa fonte. É necessário estudo e rompimento com a noção de subjetividade desvinculada de seu contexto. Não há receita. Existem caminhos. Rozana Fonseca e eu apontamos alguns em nossos textos. Sabendo que o assunto é complexo, quero dizer que topo continuar essa instigante conversa. E vocês? Me contem nos comentários o que mais suscita dúvidas?

Referências Bibliográficas:

MARCOS, C.M.; NEVES, E.O. As (im) possibilidades de fazer clínica no PAEFI: o que pode o analista face à violência? In: AMORIN, F.Z. et al. O fazer da psicologia no sistema único de assistência social. BH: CRP-MG, 2019

PEREIRA JUNIOR, M.G. A atuação da Psicologia no SUAS: um enfoque no CREAS, em seus desafios e potencialidades. Curitiba: CRV, 2014.

Como citar este texto:

PAULA, Lívia. S. A Psicologia no CREAS: os desafios da mudança de um paradigma. Setembro 2019.[citado em…]. In: Rozana Fonseca. Blog Psicologia no SUAS [Internet]. Eunápolis: Fev. 2010.Disponível em: https://psicologianosuas.com/2019/10/06/a-psicologia-no-creas-os-desafios-da-mudanca-de-um-paradigma/

*Lívia de Paula é Psicóloga do CREAS de Itaúna/MG, autora do
Cá entre nós, psi e colabora mensalmente com o Blog Psicologia no SUAS. Para ler os demais textos da Lívia: Clique aqui  

10 respostas para “A Psicologia no CREAS: os desafios da mudança de um paradigma”.

  1. Avatar de Felipe
    Felipe

    Complementando o comentário-desabafo anterior, informo que a insatisfação não diz respeito ao texto aqui disposto. A reflexão é necessária e o texto possui ponderações pertinentes. O desabafo diz respeito à situações vivenciadas e opiniões visualizadas em outros espaços de debates onde este tema é suscitado ou proposto de forma superficial e ingênua e portanto me desculpo pela aparente indignação. O blog BPS é um instrumento muito bom, rico, importante e que pode ser um meio de viabilizar/veicular as novas propostas de leitura que emergem a respeito desta tão nova e confusa (?) área de atuação.

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    1. Avatar de celinalazzari

      muito bom Felipe! Que bom saber que esse assunto está deixando de ser tabu na assistencia

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  2. Avatar de Felipe
    Felipe

    Corroborando com a opinião dos colegas, acho que na verdade o paradigma que deve ser modificado é o de que a clínica está atrelada unicamente à saúde e que as teorias não seriam suficientes para a atuação com famílias na assistência.
    É um erro pensar que as diversas abordagens reduzem o individuo ou desconsideram o contexto social. Há diversos estudos dentro da abordagem psicanalítica que já realizam leituras à luz das questões sociais e da subjetividade. Dentro da análise do comportamento (uma das mais positivistas entre as abordagens) já há gente pensando no contexto social inclusive versando por temáticas como feminismo, violência, política, etc.

    Infelizmente, acho um erro e uma ignorância reduzir o escopo de possibilidades da atuação profissional em detrimento de uma leitura que deve por “obrigação implícita” se respaldar tão-somente no materialismo histórico-dialético e teorias adjacentes.

    Nosso trabalho se reduz, nossa identidade profissional e cientifica se vê limitada, nossas técnicas são postas de lado e o psicólogo que trabalha na assistência não poderá nem mesmo ser absolvido por outras áreas de atuação em virtude de uma alienação teórico-técnica dentro de seu próprio fazer.

    Se algum psicólogo atua de forma equivocada no SUAS, não é por desejar fazer clinica e utilizar seu aparato teórico-técnico. É por não realizar uma análise do público e demandas que ele atende e por falta de competência mesmo.

    Se for para continuar do jeito que está, então que os concursos especifiquem que o cargo é “Técnico de Referência em Assistência Social” e não Psicólogo. Porque psicólogos no sentido fático do termo, não somos nestes âmbitos de atuação. Nossa disciplina contribui na leitura, mas não intervém como poderia.

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  3. Avatar de celinalazzari
    celinalazzari

    excluindo os pedidos de justiça para pericia, e avaliação psicológica, temos que pensar se nao é justamente o CREAS o local de atendimento clinico tambem
    “a avaliar o usuário sob o ponto de vista da presença ou não de um trauma e de seu tratamento”
    ue, se atendemos vitimas de violencia domestica, sexual, etc. qual é o sentido, pensando na logica interdisciplinar, de recusar o atendimento que vise a superação do possivel trauma? isso faz parte do objetivo de superação da violencia vivida, e pode ser uma ferramente eficaz para a consecução desse objetivo.

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  4. Avatar de celinalazzari
    celinalazzari

    “ainda se tem uma expectativa de que a Psicologia está ali para “tratar” dos aspectos subjetivos do ocorrido, mesmo que muitas vezes o discurso seja de que não é essa a demanda” – seria otimo se isso fosse feito, pois é a partir desse “tratamento” que uma mulher, por exemplo, pode vir a sair de uma situação de violencia, livrar os filhos de presenciar violencia, e produzir mudanças inclusive no esposo violento. acho que ignorar ou mesmo descartar essa ferramenta tao poderosa do psicologo so tem sentido se pensarmos em termos de disputa de poder. minha questao é: a quem interessa cercear a atuação do psicologo enquanto atendimento clinico no CREAS?

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  5. Avatar de celinalazzari
    celinalazzari

    Nao sei da onde se entende que psicologo trabalha com uma “noção tradicional do psiquismo encapsulado”. Gente o que mais os psicologos estudam é como a subjetividade é produto das relações humanas, dos fatores biopsicosociais.

    acho que esse argumento é pessimo pois coloca o psicologo como um ser alienado das relações sociais. o que nao é verdade. ao contrario. sabe-se que o individuo se constitui nas relações.

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  6. Avatar de celinalazzari
    celinalazzari

    sinceramente, acho uma farsa isso de “trabalho focado na familia”
    familia é a mae, é a mulher, e ponto. nao se realiza trabalho familiar, é inviavel, os atendimentos sao individuais e a mudanças na familia ocorrem a partir de mudanças subjetivas nos individuos chave, em geral a mulher tb.

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  7. […] importante deixar claro que, de forma geral, o psicólogo que atua no SUAS não deve aplicar o método tradicional de atendimento clínico individual. Sua prioridade deve ser compreender o indivíduo inserido em […]

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  8. Avatar de Leidiane
    Leidiane

    Seria ótima a continuidade do tempo, e gostaria de ver um exemplo prático, com definição da atuação dos profissionais envolvidos.

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  9. Avatar de Joelma Silva
    Joelma Silva

    Para ampliar conhecimentos, segue sugestão de leitura:

    Livro do CREPOP sobre a atuação do(a) psi na PSE:
    http://crepop.pol.org.br/wp-content/uploads/2010/11/Livro_ServicoProtecao_11mar.pdf

    Livro do CREPOP sobre a atuação do(a) psi na PSB:
    http://www.crpsp.org.br/portal/comunicacao/artes-graficas/arquivos/2008-CREPOP-CRAS-SUAS.pdf

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