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O desafio do trabalho coletivo no SUAS


Por Lívia Soares de Paula e Tatiana Borges[1]

Psicóloga do CREAS de Itaúna/MG e Assistente social na regional Franca do estado de SP

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No último texto de 2017, publicado em novembro aqui no Blog, propusemos uma discussão acerca dos desafios que se apresentam nas relações entre CRAS e CREAS. Muitas foram as manifestações dos colegas do SUAS a respeito da importância de discutirmos este assunto e das dificuldades para que esta discussão aconteça de forma efetiva e produtiva. Sendo assim, optamos por tentar avançar um pouco nas reflexões sobre esta temática. Considerando que a colega colaboradora Tatiana Borges também abordou este assunto em um de seus textos[2], surgiu o desejo de estabelecermos uma parceria na escrita desta colaboração. Esperamos que, em meio a tantas ameaças que as políticas públicas têm sofrido, nossas pontuações possam contribuir para renovar as energias daqueles que, assim como nós, continuam acreditando na potência da atuação no Sistema Único de Assistência Social.

Dentre muitas das manifestações a respeito do texto anterior, alguns profissionais expuseram sua insatisfação diante do acúmulo de trabalho em seu cotidiano. Vemos que este é um tema recorrente no âmbito dos técnicos do SUAS. E é exatamente por isso que nos interessa lançar a nós mesmos algumas perguntas: o que tem nos acumulado? Como temos olhado para este excesso de tarefas? O que nos é possível fazer diante do cenário que está desenhado em nosso equipamento neste momento?

Pode ser que nas respostas a tais perguntas, apareçam os inúmeros problemas que temos: desvalorização da política; a velha lógica assistencialista; falta de interesse e conhecimento de quem gere nossos serviços; demandas que não são nossas; demandas que são nossas, mas que escancaram nossa impotência, entre outras coisas. Diante destes problemas, a angústia é tão grande que às vezes nos cega e produz desesperança. Nos sentimos sozinhas/os e desamparadas/os. Essa sensação não é injustificada. Ainda esperamos por soluções individuais, tanto para nós, profissionais, quanto para as/os as/nossos usuárias/os. Ainda trabalhamos no caso a caso, no um a um.

Falamos sobre coletividade, mas parece que ainda não sabemos o que isso significa. E quando nos aproximamos de qualquer iniciativa que remeta a ela, nos assustamos. A ideia de coletividade nos convoca a aprender a estar com. Existirá exercício mais desafiador que este?

Se começar a refletir sobre a coletividade já nos causa inquietação, imagina só a proposta de realização de um trabalho coletivo com famílias e indivíduos no território em uma ótica emancipatória? Pois bem, esta é a intencionalidade presente na política de assistência social e se isto causa medo, podemos dizer que estamos juntas/os. Mas não juntas/os apenas no reconhecimento de que nosso excesso de serviço nos impede até de dialogar com nossos pares, queremos estar juntas/os para refletir sobre isso e, ao mesmo tempo, atuar numa perspectiva modificadora da sociedade.

Afirmamos que se trata de uma perspectiva modificadora porque temos clara a realidade individualista em que vivemos, na qual bens universais e coletivos não são valorizados e a indiferença com o que se imagina não dizer respeito a “si próprio” impera.

Sabemos que trabalhar na linha de frente de uma política pública e desenvolver um trabalho social exige conhecimento teórico-metodológico, competência técnica-operativa e, principalmente, coragem para mudar, encarar o medo e enfrentar o grande desafio que é nadar contra correnteza.

Em uma sociedade individualista, onde cada cidadão é visto como “culpado” pela sua condição social, independente de sua classe, gênero ou etnia, onde cada pessoa, individualmente, é responsável por cuidar da própria vida, estando ou não desprotegida, estando ou não vulnerável, estando ou não exposta às mais variadas formas de risco social, observamos que as políticas públicas não são fortalecidas.

O não fortalecimento das políticas públicas, em nosso entendimento, aponta para o desafio que estão sujeitos todos aqueles envolvidos no planejamento, gestão e execução dos serviços advindos de tais políticas. Toda pessoa que trabalha em determinada política assume um compromisso social de extrema relevância. É este compromisso ético-político que, muitas vezes, nos convoca a refletir sobre nossa atuação e a repensar o modo como trabalhamos. Compreendemos que não é fácil mudar hábitos e pensamentos, não é fácil mudar a rotina de trabalho e nos organizarmos em equipes com objetivos comuns, dialogando e compartilhando saberes, mas as experiências de pessoas que ousaram nadar contra a maré podem nos ser fonte de inspiração e admiração, por nos apresentarem o novo e serem bastante produtivas.

Sabemos que não é nada simples primar pela construção de um trabalho coletivo, mas cremos que é consenso de boa parte de nossos colegas do SUAS que o trabalho isolado e personalizado que, infelizmente, ainda executamos em nossos serviços, revela-se fonte de grande angústia e até de adoecimento, além de não apresentar, na maioria das vezes, os resultados que esperamos. Esta constatação não despreza a importância das nossas ações em cada situação que acompanhamos, mas será que não podemos avançar? Cremos que, em algum momento, é preciso haver a transição do individual para o coletivo, pois, nem mesmo uma equipe de referência completa e multidisciplinar dará conta do atendimento de todas as solicitações no trato “um a um”.

As premissas do SUAS exigem de nós, profissionais e gestores/as, um esforço a mais e isto não quer dizer que estamos fechando os olhos para as inúmeras dificuldades que enfrentamos, nem para as situações restritivas e negativas do trabalho em equipe, interdisciplinar e coletivo. Mas o fato é que só se garante ou conquista direitos sociais na coletividade e a História confirma esta assertiva.

Assim, atuar como profissionais de referência em uma política pública já nos coloca contra a maré e assumir a incumbência de realizar um trabalho coletivo é, de fato, nadar contra a correnteza, o que não se configura como algo simples.  No entanto, sabemos que o lugar que as águas nos levam é o que mantém as coisas como estão, podendo retroceder cada vez mais. O inconformismo com a realidade à nossa volta nos impulsiona a assumir o desafio de tentar chegar à fonte.

A maré é o acúmulo de trabalho que nos impede de refletir, planejar conjuntamente, avaliar as ações e eleger prioridades; é a equipe reduzida e desconectada que impossibilita a ampliação da proteção da assistência social; é a tentativa histórica de “disciplinar as famílias”; é a falta de recursos e/ou a má gestão; é o uso eleitoreiro da política; é a desvalorização profissional e tudo mais. E o que é preciso para sobreviver a tudo isso? Não há respostas prontas ou receitas de bolo, mas como as políticas sociais são construções e conquistas coletivas, acreditamos que o caminho passa pelo conhecimento, pela organização e resistência.

Nadadores/as que enfrentam a correnteza possuem bastante conhecimento das adversidades que os cercam. Assim, o trabalho social com os usuários da política, desenvolvido de forma coletiva, leva em consideração as múltiplas relações do território, a trajetória de vida das famílias, o campo de tensões e disputas das políticas sociais e o contexto atual da sociedade. A vigilância socioassistencial é o canal privilegiado para ampliar esta compreensão.

Além dessa apreensão da realidade social, política, econômica e cultural, a clareza da especificidade da política de assistência social, assim como da metodologia de trabalho coletivo é fundamental para ampliar nosso conhecimento e aqui a educação permanente no SUAS faz toda a diferença. Por isso, o trabalho social com famílias e indivíduos não diz respeito apenas à equipe de referência dos CRAS e CREAS, mas também à gestão, nas diferentes esferas governamentais.

Grupos que nadam contra a correnteza se tornam mais fortes e resistentes, mas haja treino, tempo, energia, habilidade, espírito de equipe e exercício prático. No SUAS, estas características se estruturam no percurso do trabalho coletivo, na integração das proteções sociais básica e especial, na articulação da equipe interdisciplinar, na intersetorialidade, nos princípios ético-políticos e na aliança necessária entre trabalhadores/as e usuários/as da política de assistência social.

Ou seja, esta forma de trabalho não condiz com ações técnicas que buscam solucionar determinados problemas de forma pontual ou fragmentadas. Só conseguiremos modificar as situações que nos incomodam se tivermos juntas/os e para isso, o processo de trabalho deve ser organizado condizente com a proposta em pauta: a coletividade. A coletividade aqui é entendida como algo pertencente á varias pessoas e que está além da simples realização de reuniões em grupos, muito embora estas sejam de bastante relevância.

Se o que visamos é a aproximação das necessidades das famílias com a proteção do Estado na resposta a estas necessidades, a clareza que faz toda a diferença é que: “as mudanças nas condições de vida das famílias dependem de transformações no conjunto das relações sociais. Portanto o trabalho social com famílias não pode ser pautado apenas nas situações singulares, como ‘casos de família’” (BRASIL, 2016, p. 38).

Sendo assim, fica nosso convite para que pensemos a coletividade como potência de transformação; para que pensemos grupos de trabalhadores e/ou usuários de forma séria e comprometida. Neste momento tão crítico do nosso país, o SUAS, mais do que nunca, exige que não sejamos apenas gente reunida. É preciso sermos grupo, sermos várias vozes entoando um canto único. Do um a um ao coletivo, eis a tarefa!

 Referências Bibliográficas:

BRASIL, MDS. Secretaria Nacional de Assistência Social Fundamentos ético-políticos e rumos teórico metodológicos para fortalecer o Trabalho Social com Famílias na Política Nacional de Assistência Social. 2016.

 Como citar este texto:

MARTINS, Tatiana. R. B. & PAULA, Lívia. S. O desafio do trabalho coletivo no SUAS. Fev.2018 [citado em…]. In: Rozana Fonseca. Blog Psicologia no SUAS [Internet]. Eunápolis:Fev. 2010.Disponível em:https://craspsicologia.wordpress.com/2018/02/28/o-desafio-do-trabalho-coletivo-no-suas

[1] Colaboram com o Blog Psicologia no SUAS.

[2] Acesse o texto de Tatiana neste link:https://craspsicologia.wordpress.com/2016/12/12/referencia-e-contrarefencia-no-suas/

 Para mais textos das colaboradoras acesse aqui

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