“Cadê o pessoal dos direitos humanos? ” Está no SUAS!

Por Tatiana Borges* Nestes tempos em que o óbvio precisa ser dito, tenho sentido a necessidade de provocar uma reflexão sobre os direitos humanos e a política de assistência social, sem, é claro, qualquer pretensão de esgotar um tema de tamanha complexidade e que na realidade nem me parece tão óbvio assim. O fato é que muito se tem dito de direitos humanos, no senso comum, na parcela retrógada da sociedade e nas redes sociais o termo aparece de forma pejorativa, carregado de distorções, mas e em nosso meio, entre nós profissionais das áreas humanas, técnicas/os do Sistema Único de Assistência Social – SUAS, como estas questões têm sido difundidas? Trabalhamos com uma política que visa garantir direitos e como falamos de direitos para os nossos usuários e usuárias? Direitos sociais e civis estão descolados dos direitos humanos? Vislumbramos a assistência social como direito? Estamos mesmo falando em direitos? Este texto é um convite para pensarmos nestas indagações e começo deixando claro que, a meu ver, o nosso lugar de fala não nos permite a acomodação do senso comum, tampouco a repetição das falácias que têm sido ressaltadas por aí como, por exemplo: “direitos humanos para humanos direitos”, “direitos humanos só serve para bandidos”…, mas, por que não podemos reproduzir o que todos falam? Primeiro por que falar em direitos humanos na contemporaneidade significa falar em direito de ser pessoa, de se constituir como gente, sem desassociar uma classe de pessoas de outra classe, como se uma classe de pessoas fosse ‘do bem’ e considerada portadora de direitos e a outra classe, ‘a do mal’, não tivesse dignidade. Desta forma, toda pessoa, por ser humana, deve contar com os direitos humanos, que na verdade são um conjunto de direitos. Nas palavras de Hanna Arendt “temos direito a ter direitos” e isso nos remete aos princípios da igualdade e equidade e ao pressuposto constitucional de que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (art. 5º). Segundo por que não existe divergência entre a defesa dos direitos humanos e o combate à criminalidade, muito pelo contrário, é justamente por se incomodar com a criminalidade que se defendem direitos, dentre eles o da segurança pública. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 3º) diz que: “Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”, veja só os direitos humanos se associa à segurança, portanto não são coisas destoantes.  A despeito da imensa literatura sobre direitos, o texto de Ramon Kayo “Ninguém é a favor de bandidos, é você que não entendeu nada” aborda esta questão da infeliz associação de direitos humanos com ‘defesa de bandido’ de uma forma bem didática, recomendo a leitura e destaco o trecho que evidencia que não é infringindo os direitos humanos que se diminui o número de marginais: “É confuso que o cidadão que clama tanto por justiça, que a lei seja cumprida, fique ávido para descumpri-la: tortura, homicídio e ameaça são crimes, mesmo que sejam contra um condenado. Então, não, bandido não tem que morrer, porque isso te tornaria tão marginal quanto (…) ninguém quer que os bandidos sejam especiais: o que o ‘povinho dos Direitos Humano’ quer é que a sociedade não crie mais marginais e que a quantidade dos existentes diminua” Assim, é por acreditar que a negação de direitos básicos traz consequências que afetam a vida de todas as pessoas e por saber que o modo como nos relacionamos em sociedade possui raízes na estrutura social, econômica, política e cultural do país e do mundo que se defendem direitos, individuais e coletivos, a todos e a quem deles necessitar.  Efetivamente, não pretendo aprofundar neste espaço o debate sobre criminalidade, mas considero imprescindível conectar as demandas de nosso trabalho no SUAS, sobretudo as demandas dos usuários que atendemos, à realidade social mais ampla e esta realidade inclui o debate sobre os direitos humanos, direitos estes construídos historicamente com a influência internacional e que são entendidos como uma unidade indivisível, interdependente, inter-relacionada e de alcance universal.  Os direitos humanos no SUAS Além do fato da assistência social ter como uma de suas funções a defesa e garantia dos direitos, a afirmação que nós, trabalhadoras/es do SUAS, somos ou deveríamos ser defensoras/es de direitos humanos faz sentido se atentarmos para a própria Política Nacional de Assistência Social – PNAS 2004 que coloca o SUAS como um dos sistemas que defende e promove direitos humanos: “São princípios organizativos do SUAS: articulação interinstitucional entre competências e ações com os demais sistemas de defesa de direitos humanos, em específico com aqueles de defesa de direitos de crianças, adolescentes, idosos, pessoas com deficiência, mulheres, negros e outras minorias; de proteção às vítimas de exploração e violência; e a adolescentes ameaçados de morte; de promoção do direito de convivência familiar; ” (p 88). “A atenção às famílias tem por perspectiva fazer avançar o caráter preventivo de proteção social, de modo a fortalecer laços e vínculos sociais de pertencimento entre seus membros e indivíduos, para que suas capacidades e qualidade de vida levem à concretização de direitos humanos e sociais” (p 90).  Na NOB SUAS 2012 também aparece a defesa da dignidade da pessoa humana, como princípio ético para a oferta da proteção socioassistencial no SUAS. Defender a dignidade da pessoa humana é defender direitos humanos, o que inclui a defesa incondicional da liberdade, da privacidade, da cidadania, da integridade física, moral e psicológica. (Art. 6º). Ao analisar as categorias profissionais que compõem o SUAS a ligação com os direitos humanos é revelada em praticamente todos os códigos de ética que disciplinam as áreas de saber integrantes deste sistema: Assistente Social: “Defesa intransigente dos direitos humanos e recusa do arbítrio e do autoritarismo”. (Princípios Fundamentais). Psicóloga/o: “O psicólogo baseará o seu trabalho no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, apoiado nos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos. ” (Princípios Fundamentais). Advogada/o: “O advogado, indispensável à administração da Justiça, é defensor do Estado Democrático de Direito, dos

Da visita ao atendimento domiciliar: rompendo paradigmas

Na primeira parte deste texto (Leia AQUI), eu trato a visita domiciliar – VD como uma prática perigosa para nós do Sistema Único de Assistência Social – SUAS e um dos motivos é por ela ser usada nos dias atuais assim como foi lá no início e meados do século passado – A leitura da Parte 1 é fortemente recomendada: Visita Domiciliar no SUAS. É óbvio que as construções teóricas e éticas sobre essa técnica avançaram ao longo do tempo, dialogando com as propostas das políticas públicas, mas do ponto de vista prático eu arrisco em pontuar que pouco se diferenciam do passado, onde as ações não tinham características e nem diretrizes de política pública. Eu também deixei linhas para continuar tecendo sobre o que poderia ser uma mudança na conceituação dessa prática no campo da Assistência Social, porque corre-se o risco da utilização desta técnica como recurso para averiguações de informações, “checagem”, fiscalização dos dados identificados nas entrevistas na unidade, critério para acesso a benefício eventual, ente outros objetivos com características policialescas e coercitivas. “Indicar os meios para reconhecer a verdadeira indigência e tornar a esmola útil aos que a dão e aos que a recebem”.  Trecho do texto: Visita Domiciliar no SUAS Diante disso, a minha proposta é que passássemos a nomear a visita domiciliar, no âmbito do SUAS, como atendimento domiciliar. É mais assertivo e coaduna com os princípios e diretrizes da Política Nacional de Assistência Social – PNAS, por se tratar de uma política pautada na Garantia de Direitos e não na averiguação de fatos, como poderíamos, sumariamente, atribuir às ações técnicas do Sistema Judiciário e de outros órgãos de responsabilização do Sistema de Garantia de Direito, por exemplo. O que me faz apostar na potência desta mudança de perspectiva é porque considero que no âmbito do SUAS o/as assistentes sociais, as psicólogas/os, os demais profissionais que compõem as equipes e claro, os que compõem os órgãos gestores, assim como a população que usa os serviços, ainda tratam a Assistência Social como lócus de tratamento individual da pobreza. Este panorama é contrário a perspectiva da cidadania, do coletivo. Há sim uma dimensão personalizada na proteção social, mas o que estou tentando problematizar é que esta sempre corre o risco de aparecer como sendo a única em detrimento da dimensão cidadã/coletiva. Ela é mais aparente, mais focal e portanto mais fácil de materializar as ações de Assistência Social. Um exemplo pode ser o da concessão de benefício eventual – BE, como a cesta básica – CB, o mais popular entre os demais. Trata-se de um direito reclamável direcionado a uma pessoa/família, e que, antes da profissionalização da Assistência Social, o acesso a esse direito era pautado na dualidade eleitor-governo. É claro que não houve um rompimento imediato nesta lógica após o SUAS, até porque, historicamente, as mudanças ocorrem paulatinamente e é necessário que várias estratégias de rompimento se juntem para além do arcabouço legal. Mas os objetivos da PNAS, deste a Lei Orgânica de Assistência Social de 93, nos direcionam para o que eu estou chamando de dimensão cidadã do acesso a um direito. Onde estaria a dimensão cidadã deste direito, a cesta básica? Vou tentar abordar na perspectiva dos atores envolvidos, fazendo as perguntas que eles deveriam ser capazes de fazer ao reclamarem, mediar/gerir este direito: Usuários: Além de mim, há quantas pessoas/famílias nesta mesma situação? Quantos conseguem acessar esse direito? Por que e desde quando estamos nesta situação? Qual é a resposta do Estado para este problema? Gestores/técnicos/profissionais do SUAS/conselheiros: Quais estratégias são necessárias para romper a lógica assistencialista tão impregnada na oferta da cesta básica? quais análises são necessárias para a compreensão qualitativa entre a necessidade apresentada e a cobertura de proteção social? A lei que regulamenta os BE está em conformidade com a garantia de direitos ou reforça a lógica da concessão para quem mais merecer? (Condicionando o acesso ao direito após avaliações e chancelamentos técnicos). A Lei foi formulada e aprovada com participação popular? As famílias beneficiárias conhecem a lei? São algumas questões que inviabilizam a mera reprodução e provocam novas direções na gestão e execução da Assistência Social. O direito é coletivo e é um grande erro achar que ele só existe por conta do indivíduo, sendo que ele existe porque atende a um interesse coletivo. E por que então o usufruto desse direito é sempre acionado no panorama individual? Se eu tenho acesso a alimentação, ao ensino com qualidade e gratuito, porque o outro não tem? Por que ainda há tantas pessoas sem acesso aos direitos fundamentais, como a segurança alimentar? Não seriam essas perguntas um indicar do exercício da cidadania e do amplo acesso aos direitos? Em muitos municípios ainda não há uma gestão de benefícios eventuais imbuída de diagnóstico que subsidiasse o planejamento para uma concessão mais próxima possível da demanda. Ocorrendo assim, uma discrepância entre demanda e oferta – ou seja, muitas famílias ficam em situação de desproteção social sem acesso ao benefício. Diante deste cenário, como critério para filtrar a demanda, é recorrente que a orientação do gestor passa a ser a de utilizar as ações dos técnicos do CRAS para realizarem a VD domiciliar e só assim “permitir” a concessão do benefício. É neste ponto que a visita domiciliar é utilizada como no início do século passado e sem que a equipe técnica pare para analisar o que está sendo feito e o mais importante, o que precisa ser feito para mudar esse desequilíbrio de acesso ao direito a curto, médio e longo prazo. Não seria interessante, a curto prazo, até que o cenário se torne mais equilibrado, as próprias famílias (da lista de demanda de CB) definirem quem mais precisa? Não seria uma proposta impossível, desde que os acompanhamentos em grupo pelo PAIF fossem realidades. Em um próximo texto irei abordar a descentralização dos benefícios eventuais para as unidades de CRAS, pois há uma enorme confusão sobre gestão de benefícios e promoção do acesso a esse direito. A proposta do atendimento domiciliar em contraponto a visita domiciliar é que a

Reflexões sobre negligência familiar no contexto da política de assistência social

Por Thaís Gomes* A proposta do texto que ora se apresenta é refletir sobre o uso do termo negligência familiar no contexto da política de assistência social e no dia-a-dia dos profissionais inseridos tanto na proteção social básica como na especial de média e alta complexidade.   O dicionário Aurélio define negligência como desleixo; incúria; indolência. É um termo utilizado para descrever situações onde grosso modo alguém deixa de prestar a assistência ou os cuidados necessários a algo ou alguém. No âmbito jurídico negligenciar alguém significa o “ato de omitir ou de esquecer algo que deveria ter sido dito ou feito de modo a evitar que produza lesão ou dano a terceiros” e este uso é o que mais se aproxima da linguagem utilizada pelos profissionais do SUAS na elaboração de seus relatórios, pareceres ou ainda nos estudos de caso em equipe, principalmente no que se refere a situações que envolvam crianças, adolescentes e idosos. No âmbito da proteção social básica por exemplo, casos avaliados como sendo situação de negligência (principalmente familiar) são geralmente encaminhados aos CREAS para que sejam acompanhados pela PSE, cuja oferta dos serviços, programas e projetos de caráter especializado é destinada a famílias e indivíduos que se encontrem em situação de risco pessoal e social por violação de direitos, abrangendo situações como violência física, psicológica e negligência, abandono, violência sexual, situação de rua, trabalho infantil, dentre outras. Essas situações vão requerer um acompanhamento especializado, individualizado, continuado e articulado com a rede. Esses encaminhamentos também podem vir de hospitais, atenção primária na saúde, conselho tutelar, dentre outros equipamentos que compõe a rede intersetorial. Porém, o uso deste termo exige um certo cuidado em sua aplicação, embora seja naturalizado e muito utilizado pelos profissionais da área social, especialmente a negligência familiar. Cuidado, pois, se faz necessário refletir sobre a origem desta negligência, para que não caiamos no erro de culpabilizar famílias sem considerar o contexto maior que as vulnerabiliza e torna a vida mais suscetível a situações de violação de direitos. Freitas et al. (2010) nos chama atenção para a necessidade de reflexão sobre a negligência a que as famílias, geralmente pobres e excluídas de um padrão mínimo de proteção social que lhes garanta qualidade de vida, são expostas em seu dia-a-dia. A negligência por parte do Estado, de acordo com as autoras, se configura na forma de um “silêncio” que prejudica o conhecimento de suas causas e dificulta a realização de ações preventivas que se façam necessárias. As autoras destacam ainda que classificar a categoria negligência demanda todo um esforço e sensibilidade para identificá-la nos contextos em que se apresentam. Apontam para a necessidade de se retirar os fatos e os sujeitos da imediaticidade da situação em que se encontram, visto que em muitos casos a presença da negligência demonstra a situação de vulnerabilidade social da população daquele território. Concordando com o que pontuam Freitas et al (2010), geralmente o encaminhamento das situações de negligência familiar se configura por meio de denúncia de situações como faltas constantes as aulas, roupas rasgadas, falta de asseio pessoal, ausência de cuidados com saúde e alimentação, dentre outros casos. A caracterização destes casos tende a ser carregada de concepções discriminatórias, que recaem especial e principalmente sobre as camadas mais pobres, associando negligência e pobreza, o que favorece de certo modo a criminalização da pobreza e das famílias pobres pela dimensão do social que lhes é atribuída, sendo vistas como “problema social”. Seguindo esta lógica, destacam as autoras “a negligência é imputada a famílias que vivem em situação de miséria, de pobreza e de vulnerabilidade, sendo duplamente perversa, pois a negligência social, por si só, constitui uma grave questão social.” Considerar que a negligência familiar é um fenômeno e que exige dos profissionais inseridos na política de assistência social, pelo escopo da própria política, um olhar atento, sensível e qualificado para que seja elaborada uma avaliação precisa do caso, com destaque para a importância de uma análise interdisciplinar da equipe de referência, é um caminho para romper com o ciclo de culpabilização das famílias, que desconsidera os problemas macroestruturais que as afetam como o contexto político-econômico, o acesso aos direitos sociais básicos, o acesso à informação, dentre outros. Se faz necessário e importante também, desse modo, e de acordo com Mioto (2013), reconhecer a “família com um espaço altamente complexo, que se constrói e se reconstrói histórica e cotidianamente por meio das relações e negociações que se estabelecem entre seus membros, entre seus membros e outras esferas da sociedade e entre ela e outras esferas da sociedade, tais como Estado, trabalho e mercado”. E nesse contexto, entendendo a família como “um processo de articulação de diferentes trajetórias de vida, que possuem um caminhar conjunto e a vivência de relações íntimas, um processo que se constrói a partir de várias relações, como classe, gênero, etnia e idade (FREITAS, 2000, p.8 apud FREITAS et al., 2010) Freitas et al. (2010) pontua ainda que falar sobre famílias significa pensá-las em suas relações tanto com a sociedade mais ampla onde se insere como também nas formas como elas se atualizam na vida diária das pessoas que lhe dão concretude e, nesse sentido, citam e concordam com Pereira (2007) no entendimento de que as políticas voltadas para as famílias devem ser “ um conjunto de ações deliberadas, coerentes e confiáveis, assumidas pelos poderes públicos como dever de cidadania para produzirem impactos positivos sobre os recursos e a estrutura da família.” Destacando ainda que o objetivo da política social em relação à família deve ser o de oferecer-lhes alternativas realistas de participação cidadã, entendendo que é dessa forma que as ações existentes na política nacional de assistência social e no sistema único de assistência social devem se relacionar com as famílias, levando em conta a matricialidade sociofamiliar como um dos eixos estruturantes do SUAS. As reflexões sobre a utilização do conceito de negligência familiar no âmbito do SUAS não se esgotam neste texto sucinto mas nos convidam a refletir sobre nosso fazer profissional e sobre a nossa

Orientações do CNAS sobre as Conferências de Assistência Social de 2017

Tenho recebido vários e-mais solicitando materiais sobre a Conferência de Assistência Social. Por isso, informo que os documentos que tenho são os disponibilizados pelo Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS. Para facilitar o acesso irei deixar os arquivos dos Informes CNAS aqui para download (mas estão todos no Blog do CNAS, onde sugiro que você deem uma navegada para conhecer mais do processo de Conferência e controle social). BAIXAR: Informe nº 02 – Orientações temáticas e organizativas para as Conferências Municipais de Assistência Social de 2017– CLIQUE AQUI  BAIXAR: Informe nº: 03 – Distribuição de Delegados  – CLIQUE AQUI Controle social –  é o exercício democrático de acompanhamento: da gestão e avaliação da Política de Assistência Social, do Plano Plurianual de Assistência Social e  dos recursos financeiros destinados a sua implementação BAIXAR ⇒Gestão do SUAS e o Controle Social (OFICINA DO CNAS COEGEMAS ) Uma produtiva conferência a todos!

A Polícia das Famílias (Livro em pdf)

Disponibilizando para vocês, especialmente para quem leu o texto que publiquei recentemente aqui: Visita Domiciliar no SUAS, o livro A Polícia das Famílias em PDF. A intenção é que vocês leiam este livro antes do nosso próximo texto sobre Visita Domiciliar – parte II. E como o acesso a ele é por PDF (ele é de 1980), eu achei por bem disponibilizá-lo aqui. BAIXAR LIVRO ⇒ A-Policia-das-Famílias DONZELOT, Jacques. A polícia das famílias. Rio de Janeiro, editora Graal, 1980. Até breve e boa leitura!

Violência Sexual Infanto-Juvenil no SUAS: das demandas de urgência ao “urgente” repensar do nosso fazer

Por Lívia de Paula* Em meu primeiro texto neste espaço, publicado no ano passado, contei um pouco da minha trajetória de inserção na Política de Assistência Social[i], abordando como iniciei minha atuação no extinto Serviço Sentinela, que tinha como foco o atendimento às crianças e adolescentes vítimas de violência sexual e suas famílias. Foi a partir desta inserção, na tentativa de qualificar o meu trabalho, que fui me aprofundando nos estudos desta temática, a meu ver, tão complexa e desafiadora para os mais diversos profissionais com ela envolvidos. Posteriormente, como também contei lá, as ações daquele Serviço foram incorporadas ao trabalho do CREAS, órgão no qual estou inserida atualmente. Com esta incorporação, o escopo do trabalho com crianças e adolescentes foi ampliado, pois o CREAS deve atender a qualquer tipo de violação contra este e outros públicos, e não somente às violações de cunho sexual. Apesar disso, no município em que atuo, constato que a grande maioria dos encaminhamentos que chegam ao equipamento continuam sendo de situações envolvendo crianças e adolescentes vítimas de algum tipo de violência sexual. Não sei bem ao certo a razão disso. Talvez esteja relacionada com a gênese do trabalho, quando da criação do Serviço Sentinela. Esta é uma hipótese. Mas esta constatação me traz uma curiosidade: como é isso nos municípios de vocês? No que tange à criança e adolescente, qual é o tipo de violação que mais chega à PSE (Proteção Social Especial)? Me interessa saber e creio ser uma pesquisa interessante, que pode até produzir um ótimo papo para outro texto aqui no Blog. Por ora, vamos falar de violência sexual contra crianças e adolescentes no contexto do SUAS. Este é o chamado que o mês de maio nos traz, com a marca do dia 18: “Dia Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes”, data na qual nos mobilizamos de muitas maneiras para falar do assunto e sensibilizar nossos territórios sobre o mesmo[ii]. Debruçar-me sobre esse tema tão caro para mim, tendo em vista minha trajetória, não se revela missão fácil, embora possa parecer. Há muito para se falar sobre violência sexual. Há muito ainda que se falar sobre violência sexual. Cotidianamente me vejo refletindo sobre o quanto ainda precisamos aprender, ouvindo nossos usuários, sobre o quanto já dissemos sobre o assunto, mas sobre o quanto ainda precisamos dizer. Esse texto pretende ser um começo. E para começar, precisei então escolher um recorte dentre a vastidão dos aspectos que estão vinculados à questão. E o recorte escolhido para hoje vai conversar muito de perto com as ideias colocadas por Thaís Gomes e Rozana Fonseca, queridas colegas do Blog, em seus últimos textos[iii]. É preciso retomar a pergunta que me parece evidenciada nos textos citados: o nosso trabalho no SUAS serve a quem? Tal questionamento mostra-se extremamente pertinente quando falamos de violação sexual infanto-juvenil. Apesar de inegáveis avanços, percebo que este tema ainda se apresenta carregado de desconhecimento, preconceitos, “certezas” e “boa vontade”, inclusive nas posturas dos profissionais da Assistência Social e de outras políticas intersetoriais. Aliado a isso, este campo revela-se um campo tomado pelas urgências, o que acaba por representar um risco, pois pode nos conduzir para uma atuação carente de reflexão e planejamento e, portanto, pouco ética e técnica. Estas urgências começam no momento da revelação, passando pela denúncia, pelo exame pericial, pelas necessidades de cuidado e proteção e chegando à urgência da “prisão” dos agressores. Propositalmente utilizo aqui prisão para lembrar que prisão e punição não significam responsabilização. E este também é assunto para um bom diálogo em outro momento. Mas, vamos voltar a pensar sobre as urgências. É necessário ressaltar que os primeiros cuidados com as vítimas são realmente da ordem do imediato. E é preciso deixar claro que estes primeiros cuidados são tarefas para o Conselho Tutelar, Delegacias e Hospitais, órgãos responsáveis por tomar as primeiras providências para a garantia da atenção e proteção pontuais. Nesta temática, o que caberia então à PSE, mais especificamente ao CREAS? Qual o nosso lugar frente às situações de violência sexual contra crianças e adolescentes? Vejamos o que nos dizem as “Orientações Técnicas: Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS”, publicadas em 2011, pelo MDS. Esse documento pode nos ajudar a lançar luz sobre isto, quando aponta que o papel da PSE é trabalhar, de forma continuada, potencializando recursos para a superação e prevenção do agravamento das situações que colocam as famílias em risco, no que concerne às violações de direito por elas vivenciadas (BRASIL, 2011, p.18). Para iluminarmos ainda mais nossa questão, caberia então perguntar: se a violência sexual contra crianças e adolescentes aparece como um campo tomado por urgências, qual é a “urgência” que se coloca para nós, técnicos dos CREAS, no acompanhamento destas situações? Considero imprescindível nos fazermos esta pergunta e sairmos à caça de respostas, pois no que se refere ao assunto em foco, há por aí muitos órgãos respondendo por nós. Nosso trabalho é, o tempo todo, confundido com o trabalho dos órgãos de responsabilização, qual seja: a averiguação e a busca de uma “verdade” sobre a violência sexual em tela. Por vezes, somos demandados a atestar se a violação ocorreu ou não ocorreu ou se a criança pode estar fantasiando o episódio, entre outras solicitações que nos chegam. Muitas são as nossas tentativas, em nível individual e coletivo, de estabelecer um diálogo com o sistema de justiça a fim de clarear as possibilidades e limites de nossa prática e efetivar um trabalho de real parceria, no qual não sejamos mais subordinados a ordens arbitrárias ancoradas naquilo que se entende por urgência para o contexto jurídico. As Orientações Técnicas do CREAS nos informam que não cabe ao serviço:  Ter seu papel institucional confundido com o de outras políticas ou órgãos, e por conseguinte, as funções de sua equipe com as de equipes interprofissionais de outros atores da rede, como, por exemplo, da segurança pública (Delegacias Especializadas, unidades do sistema prisional, etc), órgãos de defesa e responsabilização (Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria

Desvelando as Masculinidades no contexto do SUAS: possibilidades de reflexão

Por Lívia de Paula* Em texto anteriormente publicado aqui no Blog, iniciei algumas reflexões a respeito de como temos pensado as questões de gênero dentro do contexto das famílias que acolhemos no SUAS. No mês passado, avançamos um pouco nesta tarefa trazendo questionamentos sobre nossa atuação com as mulheres que chegam aos nossos equipamentos.[i] Considero esta temática fundamental para o trabalho da Psicologia dentro da Política de Assistência Social, principalmente nos CREAS, tendo em vista que a maioria das violações que acolhemos estão alicerçadas em aspectos referentes às relações de gênero. No intuito de continuar compartilhando indagações sobre o assunto, pretendo trazer hoje algumas considerações sobre nossa prática frente às masculinidades. Coloco a mim mesma um desafio com esta proposta: como falar do masculino sendo mulher? Atualmente, assistimos a muitos debates e “embates” sobre o “lugar de fala”: pode uma mulher falar de masculinidades? Pode um branco falar de preconceito racial? Pode um homem contribuir com as lutas do feminismo? Sobre esta questão, Adriano Senkevics, no texto “As armadilhas do “lugar de fala” na política contemporânea”, publicado em seu Blog Ensaios de Gênero, traz apontamentos bastante pertinentes: Para além disso, o “lugar de fala” é usualmente tomado como “autoridade de fala”, como se só quem vivesse uma experiência (no lugar subalterno) pudesse discutir aspectos que a circundam. Vejam só: não é preciso ser negro para falar de racismo, na medida em que debater o racismo, ou as relações étnico-raciais em geral, envolve trazer à tona dimensões que também tocam as pessoas brancas, amarelas e de outras cores e raças. Recusar esse pressuposto é ignorar justamente o aspecto relacional da construção social das diferenças. Nunca é demais reiterar: falar sobre algo ou alguém não significa falar em nome de algo ou alguém. Das experiências individuais, próprias de cada um, devemos saltar para a reflexão coletiva – esta é a base do campo político.[ii] Tentando então este salto para a reflexão coletiva, vamos falar sim de masculinidades. Se os homens são parte das famílias que acompanhamos e se a Psicologia é uma profissão predominante feminina, quem, senão nós, construirá um conhecimento sobre o assunto?   Não podemos nos furtar desta questão, mesmo correndo o risco de críticas ancoradas no embate do “lugar de fala”. A primeira pergunta que me ocorre sobre o assunto é: os homens chegam ao SUAS? Como? Em minha prática na PSE (Proteção Social Especial), observo os homens chegando principalmente no papel de agressores, adolescentes em conflito com a lei ou como pessoas em situação de rua. E no seu equipamento, como os homens têm chegado? Sua equipe tem falado sobre isso? Estas questões me interessam por perceber que estamos silenciados quando o assunto é a vivência das masculinidades. Os homens nos chegam, mas e nós? Conseguimos chegar até eles? Muitas são as questões que podem ser pauta para construções teórico-práticas no que tange às masculinidades. Podemos começar pensando sobre a educação que os meninos recebem em nossa cultura machista. Nossos homens são ensinados a dominar, a exercer autoridade sobre o outro em qualquer que seja a situação, e principalmente nas relações afetivo-sexuais: “Se não for assim, não é homem.” “Homem não chora.” “A mulher é propriedade do homem.” Nossos homens são estimulados desde criança à agressividade e violência: “Homem não leva desaforo pra casa”. “Tem que ser valente e corajoso”.  É necessário que compreendamos isto para que ampliemos nosso entendimento acerca de como as representações e estereótipos sobre o papel masculino dentro das famílias é construído e formatado cotidianamente em nossa sociedade. São estes mesmos homens, educados sob a égide da dominação masculina, que estão inseridos em nossos serviços quer como agressores, infratores, pessoas em situação de rua, e em menor número, também como vítimas de violência. Pinto Junior (2005) coloca que o fato da subnotificação das situações de violência sexual contra meninos ser ainda maior do que a subnotificação dos casos envolvendo meninas também pode encontrar alguma compreensão na forma como os meninos são criados. Uma denúncia dessa natureza traz descrédito e dúvidas quanto à identidade sexual da vítima. Segundo ele, há também uma ideologia, tanto entre o senso comum quanto entre a ciência, de que os meninos estão imunes a esta violação por serem “machos”, e que, quando passam por esta situação é por terem dado permissão ou desejado que o fato ocorresse.[iii] Nas suas contribuições, encontramos ainda outras menções ao processo de socialização dos homens: […] o medo do estigma da homossexualidade, os sentimentos ambivalentes, a atribuição de culpa aos meninos e a própria “cegueira” da sociedade podem fazer que o número de casos reportados seja muito pequeno. Além disso, os meninos são socializados no sentido de não demonstrar qualquer tipo de fraqueza ou de medo. (PINTO JUNIOR, 2005, p. 44). Partindo dos aspectos aqui elencados, percebemos o quanto é imprescindível que nós, técnicos do SUAS, nos debrucemos sobre os processos de masculinidade e sobre as experiências dos homens que acolhemos. Investigar e entender as vivências masculinas nos territórios e nos contextos familiares é condição para um trabalho efetivo de fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. Atualmente, já existem estudos e pesquisas que buscam alternativas para romper com os paradigmas de educação de gênero que estamos discutindo. Um destes estudos é o de Januário (2016), que nos chama a atenção para o caráter pluralista e mutável da noção de masculinidade: Importa também destacar que não obstante numa mesma sociedade, as masculinidades são múltiplas, definidas por critérios como a idade, classe social, orientação sexual ou etnia (Nixon, 1996) sendo passíveis de mudar ao longo da vida de uma pessoa. As características que definem a masculinidade, seja na vida privada ou na vida pública, podem variar bastante de uma cultura para outra. (JANUÁRIO, 2016, p.111).[iv] Além das pesquisas acadêmicas, existem algumas iniciativas que podem contribuir para qualificar nosso trabalho na Política de Assistência Social. A página do Facebook “Já falou para seu menino hoje?” é uma dessas. Criada pela pedagoga Caroline Arcari e pela psicóloga Nathália Borges, a página é sempre alimentada por postagens propulsoras de reflexões

Visita Domiciliar no SUAS

Parte I – Introdução ao tema e questionamentos iniciais Estava devendo este texto há um tempo, desde que publiquei o texto referente a busca ativa. O qual eu recomendo a leitura antes de ler este acerca da visita domiciliar (VD). (Acesse aqui “Busca ativa: estratégia para o Trabalho Social com Famílias”) Para você que deixou pra ler o texto indicado depois 😉 , vou só pontuar aqui que a Busca Ativa é diferente da visita domiciliar. A visita domiciliar pode ser uma estratégia para a realização de uma busca ativa, mas uma busca ativa pode não ser uma VD. Pois bem, quando pensei em escrever sobre este assunto foi porque recebo muitas perguntas/afirmações/e-mails de colegas, como: O psicólogo pode fazer visita domiciliar? A visita domiciliar é atribuição privativa do assistente social O técnico de nível médio (orientar social/educador social/agente social) pode realizar visita domiciliar? Insolência como: “a/o psicólogo ao acompanhar a/o Assistente social nas visitas tem agido como bolsa tiracolo” Sempre tem que ser uma atividade realizada pela dupla (Assistente social + psicóloga)? Não sei como estas questões soaram para você, a mim trazem a necessidade de falar sobre isso refletindo o quanto precisamos avançar na qualificação do trabalho social ofertado na Assistência Social. O que é Visita Domiciliar? É uma técnica social, de natureza qualitativa, por meio da qual o profissional se debruça sobre a realidade social com a intenção de conhecê-la, descrevê-la, compreendê-la ou explicá-la (…) tem por lócus o meio social, especialmente o lugar social mais privativo e que diz respeito ao território social do sujeito: a casa ou local de domicílio (que pode ser uma instituição social). Amaro, pág.19 Historicamente a visita representa um recurso essencial que o assistente social aciona para exercer seu trabalho. No item “profissionais visitadores” (pág. 25) a autora ressalta que os assistentes sociais são os profissionais mais qualificados à execução da VD considerando sua formação. Ela também reconhece que em razão da territorialização das políticas sociais, cresce o número de profissionais que empregam a VD como metodologia de trabalho, como psicólogos comunitários, médicos de famílias e enfermeiros -O livro não é específico da atuação na Assistência Social. O livro da Sarita Amaro é uma referência neste tema e o livro que cito aqui não é o livro lançado em 2003 que a maioria de vocês conhecem: Visita Domiciliar – Guia para uma abordagem complexa. Trata-se de um livro totalmente novo intitulado “Visita Domiciliar: Teoria e prática” de 2014, lançado pela editora Papel Social. Bom, a intenção não é fazer resenha do livro, só quero recomendá-lo fortemente porque você encontrará nele, de forma bem clara, os aspectos teóricos, técnicos, éticos e metodológicos da visita domiciliar, nortes imprescindíveis para uma boa prática desta atividade no SUAS.  Eu, portanto, continuarei o texto tentando dialogar com as questões apontadas acima trazendo o diálogo para o que observo e analiso no nosso cotidiano fazendo ainda uma ponte com a leitura do livro A Polícia das Famílias de Donzelot. Problematizando a Visita domiciliar A visita domiciliar é uma prática, a meu ver, muito perigosa na rotina dos serviços da assistência social. Digo isso porque sabemos que há uma enorme precarização do trabalho e que os profissionais contratados ou mesmo os concursados não foram capacitados para exercerem o trabalho social segundo os objetivos de cada serviço e de acordo com o que preconiza a Política de Assistência Social. Ainda é recorrente uma prática esvaziada da concepção do direito social e pautada nos direitos humanos. Assim, corre-se o risco da utilização desta técnica como recurso para averiguações de informações, “checagem”, fiscalização dos dados identificados nas entrevistas na unidade, critério para acesso a benefício eventual, ente outros objetivos com características policialescas e coercitivas. “Indicar os meios para reconhecer a verdadeira indigência e tornar a esmola útil aos que a dão e aos que a recebem”.* Ao ler o livro “A Polícia das Famílias” de J. Donzolot eu fiquei impressionada como que ainda é tão arraigado nas entrelinhas das intervenções dos profissionais no SUAS, mesmo que a PNAS propõe o contrário, a ideia de que é natural metodologias de intervenção que venham certificar A VERDADE acerca da necessidade/demanda apresentadas pelas famílias. Assim, considero que a VD teria que passar por uma revisão quanto a terminologia e metodologia. Ela ainda carrega o peso do passado na sua gênese no sistema judiciário e no trabalho filantrópico. A Visita Domiciliar é proposta como uma técnica para conhecer de perto a realidade das famílias. Na real, estamos batendo à porta das pessoas sem aviso prévio e sem sermos convidados (nem vou falar hoje do Criança feliz!). Visita se faz a quem conhecemos e a quem nos convida! Ou você fica satisfeito de receber uma pessoa desconhecida em casa, sem avisar, para te fazer um monte de perguntas e querer saber como você gerencia sua família? Ah! E o fato da pessoa/família ser pobre perde automaticamente o direito a vida privada? Ou você tem batido a porta das pessoas de posses a qualquer hora do dia e sem expor o motivo? … “É sempre preferível que o visitador não convoque seu cliente, mas vá ao domicílio deste último e que tal visita seja feita de surpresa”… “A tecnologia do inquérito sobre as famílias pobres, organizada por Gerando pôde, então, tornar-se uma fórmula extensiva de um controle social cujos agentes serão mandatados por instâncias coletivas e se apoiarão na rede administrativa e disciplinar do Estado”. (Le visiteur du pauvre, concebido em 1820) – problematizado por Donzelot no seu livro de 1977 “A Polícia das Famílias”. Deixo vocês com essas provocações e muito em breve volto com a Parte II e poderá ter parte III também (Caso a parte II fique extensa). Minha pretensão é trazer o restante do texto expondo o que proponho para a visita domiciliar como estratégia de intervenção do trabalho social com famílias num tempo pós SUAS pautado numa lógica do direito social. Espero que tenha conseguido provocar algumas inquietações na sua prática e aproveite para deixar aqui suas ideias, o que você pensa a respeito! Referências: DONZELOT, Jacques. A polícia das famílias.

Quem fiscaliza os serviços e benefícios da Assistência Social?

Por Tatiana Borges* Como assistente social e servidora do estado é comum, em alguns momentos no trabalho cotidiano do SUAS, sermos confundidas com fiscais da política de assistência social dos municípios. Para além da fiscalização, observo por diversas vezes que gestoras/es e trabalhadoras/es municipais esperam do ente estatal uma ação mais incisiva que possa solucionar as inadequações existentes nas equipes de referência, nas estruturas físicas e formas de organização dos serviços e benefícios socioassistenciais, como também nas próprias gestões de assistência social. Considero que este anseio é próprio de quem quer ver o Sistema Único de Assistência Social que tanto estudamos nas orientações técnicas, textos e legislações, materializado na realidade de trabalho vivida. Penso ainda que esta aspiração parte de quem busca e acredita ser possível que o SUAS, tal como proposto, atue na proteção a vida, na prevenção da incidência de riscos sociais, na identificação e superação de desproteções sociais e na redução de danos impactando a existência de grupos de pessoas. Eu também acredito nesta possibilidade do SUAS viabilizar direitos socioassistenciais. No entanto, aprendi nos espaços de formação de assistentes sociais a evitar pensamentos mágicos e a desvincular do messianismo presente na profissão e que obviamente influencia a política de assistência social. Este messianismo é a ideia de que “boas moças” salvam as pessoas, resolvem os problemas da pobreza na sociedade e promove as mudanças sociais. Não obstante, a desassociação do fatalismo histórico onde a realidade já estaria definida levando a acomodação e mediocridade profissional também sempre se fez urgente. (IAMAMOTO, 2005) Trago este debate profissional por que de alguma forma a história da política de assistência social e da profissão de serviço social se misturam, ambas nasceram da necessidade do Estado controlar e fiscalizar os pobres para manter a ‘ordem social’. No serviço social houve o momento de ruptura com o modelo conservador conhecido como movimento de reconceituação da profissão. Na política de assistência social, a ruptura é a constituição, é a LOAS e o SUAS que coloca em foco o rompimento com velhas práticas assistencialistas, clientelistas e descontínuas para se trabalhar com a noção de direitos que podem ser reclamáveis, com serviços continuados, gratuitos e qualificados e também com o controle social das ações. Neste contexto de rupturas não seria demais afirmar que não há facilidades e não existe mágica, embora possamos sim construir este novo caminho de efetivação da política conforme previsto nas normativas e é exatamente o que tem sido feito pelos conjuntos diversos de atores/as sociais que lutam cotidianamente em seus espaços ocupacionais e de participação para que o SUAS se torne uma realidade. E para que estas novas possibilidades aconteçam de fato é preciso ter noção de totalidade e perceber o movimento dialético da sociedade, além dos diferentes projetos societários que disputam forças e envolvem os espaços públicos em cada esfera de governo. E por falar em esferas de governo o que pretendo ressaltar neste texto é o fato de NÃO existir na Constituição Federal e legislações do SUAS uma hierarquia entre os entes federados (estado, município e união) mas sim corresponsabilidades. Valeria um estudo mais aprofundado da relação entre estados e municípios no âmbito da assistência social para entendermos como se estabeleceu esta suposta hierarquia. Em minhas pesquisas encontrei duas publicações específicas do estado de São Paulo que evidenciam a prioridade histórica do repasse de auxílios e subvenções estaduais diretamente às entidades privadas sem critérios claramente estabelecidos e com a intervenção do poder legislativo. Esta prática ainda é existente e conhecida como indicações parlamentares, que não passam pelo crivo dos conselhos de assistência social. Segundo BOVOLENTA (2016) este tipo de ação “produziu uma relação de subalternidade entre os entes, uma vez que criava uma hierarquia entre estados e municípios”. Assim, não existe na lei, mas esta visão de hierarquia criada equivocada e historicamente ainda permeia a relação estado-municípios e a meu ver prejudica o avanço da política de assistência social, pois além de criar expectativas irreais, faz com que algumas realidades sejam distorcidas e por vezes até omitidas pelo receio de repreensões, punições e/ou perda de recursos. Efetivamente, as fragilidades e lacunas das ofertas socioassistenciais devem ser conhecidas e analisadas criticamente em uma relação de horizontalidade e confiança entre os entes federados para que seja possível a união de esforços no alcance da superação, primando sempre pela qualidade do atendimento à população usuária desta política pública. É preciso estar claro que o conceito atual da gestão no SUAS tem se distanciado do caráter hierárquico e centralizador e assumido um papel de: cooperação; de apoio técnico na organização, implantação e reordenamento dos serviços; de educação permanente; supervisão; acompanhamento; diagnóstico; informação; vigilância; monitoramento analítico por dados e indicadores e avaliação. Aspectos que orientam o planejamento estratégico da política pública de assistência social, com intuito de aprimorar a gestão, fortalecer o controle social e principalmente qualificar os serviços, programas, projetos e benefícios de assistência social. Dito isso seria a fiscalização a função principal do ente estadual? Se atentarmos para os textos da LOAS (art. 13) e da NOB SUAS 2012 (art. 12 e 15) que dispõem sobre as atribuições dos entes estatais não encontraremos esta função como sendo a principal dos estados, mas sim dos conselhos municipais de assistência social, devido ao seu caráter deliberativo. O que não quer dizer que não exista ou deva existir apuração de denúncias e/ou fiscalizações quanto à utilização de recursos estaduais na finalidade prevista, por exemplo. Mas não é esta a essência da gestão estadual da política de assistência social. Para esta atividade existem órgãos específicos como tribunais de contas, controladorias gerais, entre outros, além do Ministério Público que deve apurar as irregularidades e tomar as medidas cabíveis. Segundo as orientações às práticas de supervisão do estado de São Paulo (2016): O papel preponderante do estado é monitorar e avaliar territorialmente a gestão socioassistencial das diferentes regiões, acompanhando a gestão municipal e os resultados de suas ações, dando apoio e assessoria técnica de forma sistemática, visando o efetivo cumprimento das normativas e buscando excelência no atendimento à

Mulheres que chegam ao SUAS: que histórias elas podem contar?

Por Lívia de Paula* Nossa história tem meninas, e meninas também contam nossa história. É impossível compreender o Brasil sem a insistência de compreender suas meninas. Porque entre nós ser menina ainda constitui uma desvantagem social e, sendo pobre, uma exclusão social. -Marlene Vaz- Dia 08 de março: Dia Internacional da Mulher. Em virtude desta data, o mês de março assume em diversos segmentos sociais, inclusive nas políticas públicas, um caráter de celebração e mobilização diante das questões relativas ao feminino. A publicidade comercial foca seus esforços no incentivo ao consumo, a indústria da beleza vende a importância de estar sempre bela e atraente, os serviços de saúde oferecem exames preventivos, orientações e consultas específicas. O SUAS também se mobiliza. Lembro-me que, no ano passado, o Blog Psicologia no SUAS realizou um Hangout com o intuito de discutir quais estavam sendo as práticas propostas na política de assistência social dos municípios para marcar esta data. Muitas foram as críticas feitas por nossa editora Rozana às atividades já banalizadas nos equipamentos, como o famoso “Dia da Beleza”, por exemplo. Seus questionamentos diziam respeito a quais estereótipos estamos reforçando quando reduzimos nossas ações a proporcionar um corte de cabelo, um alisamento dos fios e uma maquiagem.[i] Ao me propor a escrita deste texto, me vi pensando: “Será que conseguimos avançar em alguma coisa no que tange a esta temática?” Meu convite para você, leitor e colega do SUAS, é esse: vamos pensar juntos como temos atuado frente às questões do feminino? Comecemos pensando sobre a pluralidade escondida nessa história de ser mulher. O nosso “Dia da Beleza” contempla essa pluralidade? Usando uma das frases mais conhecidas de Freud: será que sabemos “afinal, o que querem as mulheres?” Será que sabemos de fato quem são essas mulheres que chegam até o SUAS? No nosso cotidiano de trabalho, estamos sempre falando sobre essas mulheres. Discutimos o lugar da mulher na sociedade contemporânea e as questões de poder imbricadas nas violações a que todas nós estamos sujeitas. Falamos de empoderamento e autonomia. Ao mesmo tempo, em nossa rotina prática, preenchemos nossos relatórios quantitativos e categorizamos: meninas vítimas de abuso sexual, adolescentes aliciadas por redes de exploração sexual, mulheres prostitutas, mulheres vítimas de violência doméstica…. Lidamos todos os dias com situações nas quais a vulnerabilidade, a fragilidade e os mais diversos tipos de violência fazem com que mulheres cheguem até nós “gritando por socorro.” No meu texto anterior[ii]: “Feliz Gestão Nova: o SUAS convida a uma Psicologia Neutra?”, defendi a ideia de que o SUAS convida, para o trabalho em seus equipamentos, profissionais que se posicionem em defesa dos direitos das minorias, dentre elas, as mulheres. Só uma defesa intransigente torna possível uma transformação nos ciclos de violação a que estão submetidas nossas usuárias. E é por isso que precisamos ocupar os espaços falando de violência, de identidade de gênero, de relações de poder alicerçadas em nossa cultura machista. Mas é também necessário nos atentarmos para uma possível armadilha que pode nos capturar no percurso desta tarefa. Esta armadilha surge quando, ancorados em nossos posicionamentos ideológicos, deixamos de estar em contato com a pessoa que estamos atendendo. Isso pode fazer com que criemos balizadores do que acreditamos “mais adequado” para a vida das usuárias. Algumas frases, comuns de serem ouvidas nos equipamentos, exemplificam o que exponho: “por que você não se separa deste companheiro?”, “ela precisava largar a prostituição e o uso das drogas”, “para quem não tem nada, aprender artesanato já seria uma fonte de renda”.  Agindo assim, corremos o risco de simplesmente trocar uma forma de opressão por outra. Corremos o risco de criar um outro modelo idealizado de mulher. Será que nosso papel não seria trabalhar as situações de vulnerabilidade que envolvem as mulheres a partir das experiências de feminino que nos são apresentadas? Circula sempre pelas redes sociais, em diversas páginas que discutem as questões do feminino, uma frase bastante interessante: “Lugar de mulher é onde ela quiser.”  Creio que não podemos nos esquecer disso. Se acreditamos que o patriarcado nos tirou a voz por tanto tempo e ainda hoje continua nos oprimindo, não é hora de escutarmos a voz das mulheres? Precisamos escutar principalmente aquilo que é difícil de ouvir. Aquilo que nos faz nos sentir impotentes. Aquilo que, por vezes, toma o sentido oposto do que acreditamos liberdade feminina. Segundo Torres, Nas situações, mais complexas, é preciso não apenas nos colocar no lugar do outro e entender o lado do outro, tentar sentir o que o outro sente – o que tange o conceito de empatia –, mas também conseguir se aproximar do fenômeno em questão. (TORRES, 2015)[iii] É necessário nos atentarmos para a experiência de cada mulher que acolhemos.  Existe ali uma manifestação do feminino, que se revela singular e intransferível, que nos aproxima do fenômeno, que amplia nossa compreensão e que pode inclusive enriquecer nossas estratégias de enfrentamento no nível macro. O documento “Referências técnicas para atuação de psicólogas (os) em Programas de Atenção à Mulher em situação de Violência”, produzido pelo Conselho Federal de Psicologia, no ano de 2013, traz uma contribuição importante para esta questão, quando aborda o referencial da clínica ampliada. Segundo o documento: Um diferencial dessa clínica denominada ampliada é que a escuta realizada pelo profissional não se interessa apenas pela situação de violência, mas pela pessoa na sua integralidade, considerando todas as suas necessidades. (p.50)  Apesar do documento não tratar do trabalho no SUAS, penso ser uma boa sugestão de leitura exatamente por possibilitar que ampliemos o nosso olhar sobre esta problemática. Ainda é urgente falar, e falar muito, sobre violência, exclusão e sobre as fragilidades e desvantagens de ser mulher em nossa cultura. Mas que possamos compreender as pessoas que acolhemos em sua integralidade, que possamos parar para escutá-las sobre aquilo que vivem. Por que ao invés de promover Dias da Beleza e do Artesanato, não fazemos de março um mês de Histórias, por exemplo? Por que não convidar essas mulheres para uma “costura” de vivências, na qual cada uma pode