A Psicologia no CREAS: os desafios da mudança de um paradigma
Por Lívia de Paula* A questão da prática da (o) psicóloga (o) no SUAS, embora seja um assunto no qual já observamos muitos avanços, ainda causa dúvidas, inquietações e angústias para as (os) profissionais que atuam na Política de Assistência Social. Sobre esse tema, Rozana Fonseca escreveu dois textos riquíssimos há pouco tempo aqui no Blog. Sugiro a leitura: Atendimento psicossocial ou interdisciplinaridade na assistência social? e Abordagem psicossocial e a práxis na Assistência Social. Em um deles, ela trabalha as diferenças entre os termos interdisciplinaridade e psicossocial. É de suma importância para nós, profissionais do SUAS, compreendermos essas diferenças, para que possamos atuar em conformidade com aquilo que entende-se como essencial aos preceitos da Política de Assistência Social. No segundo texto, Rozana vai trazer o conceito de psicossocial como metodologia. Contidas no seu texto, estão referências bibliográficas preciosas sobre o assunto. Ela aponta também para a experiência da Saúde Mental no campo da Atenção Psicossocial, que muito pode nos auxiliar para a compreensão desta abordagem. São dois textos bastante completos sobre o tema, com os quais pretendo dialogar nesta minha contribuição. O texto de hoje atende a solicitação de uma leitora deste espaço. Seu desejo é de ampliar sua compreensão acerca do atendimento psicossocial pela psicóloga (o) no CREAS. Sobre este tema, Pereira Junior (2014) conduziu sua pesquisa de mestrado que gerou um livro referenciado ao final deste texto e o qual sugiro para leitura. Nesta pesquisa, o autor investigou a atuação das (os) psicólogas (os) nos CREAS de quatro municípios da região metropolitana de Belo Horizonte, a partir de sua própria inserção em um destes equipamentos. Pereira Junior (2014) aponta um aspecto sobre o qual tenho refletido bastante nestes anos de atuação no CREAS do meu município: a amplitude de abrangência do trabalho do CREAS, sobretudo do PAEFI, que convoca a (o) profissional a um imenso conjunto de conhecimentos necessários para a intervenção nas situações atendidas. “Apesar de estarem todas na categoria violações de direitos, […] cada uma dessas situações demandaria um embasamento teórico e metodológico próprio.” (PEREIRA JUNIOR, 2014, p. 61) Sob meu ponto de vista, esta é uma importante particularidade que perpassa a atuação da Psicologia no CREAS. O desafio de conhecer minimamente cada um dos públicos e das violações com as quais irá se deparar cotidianamente. Em que pese entendermos que o foco central é o trabalho com a família, para que este trabalho seja qualificado é primordial termos contato com o percurso histórico da defesa de direitos de cada público (criança/adolescente, mulher, idoso, pessoa com deficiência, público LGBTQI+, entre outros) e com as teorias e metodologias desenvolvidas no que concerne a cada um destes públicos. É, a meu ver, um dos primeiros quesitos sobre o qual a (o) profissional do CREAS precisará se debruçar. Quais os públicos que eu atendo? O que eu sei sobre eles? Antes, é claro, faz-se necessário que essa (e) colega conheça o que é o SUAS, as Proteções Sociais e o CREAS. Outra questão abordada pelo mesmo autor é a demanda que chega até os CREAS de verificação e apuração de denúncias as mais diversas, o que produz atravessamentos de toda ordem no trabalho neste equipamento. Esta, talvez, seja a pauta mais difícil para nós técnicas (os) deste serviço. Seu enfrentamento não é simples, revela-se complexo e até ameaçador. No entanto, nosso desconhecimento quanto às diretrizes do SUAS pode contribuir para a perpetuação desta realidade. O trabalho psicossocial ofertado nos nossos equipamentos, embora atravessado por este tipo de demanda, não deve se omitir na sua função de promotor de direitos, de empoderamento e autonomia dos usuários frente à complexidade das violências por eles vivenciadas. Aqui no Blog, podem ser encontrados diversos textos que tratam dessa relação desafiadora com o Sistema de Garantia de Direitos – SGD. Eu mesma já escrevi alguns. Dê uma pesquisada, leia, se atualize sobre o assunto. Cotidianamente temos sido chamadas (os) a nos posicionar a esse respeito. Seja através do envio de relatórios, seja em reuniões com os profissionais dos órgãos de justiça. A clareza do que fazemos e dos objetivos do nosso trabalho é que nos trará a segurança necessária para esses momentos. Além destas duas, muitas outras questões estão postas quando se trata da atuação da (o) psicóloga (o) no CREAS, mas sendo o intuito do Blog primar por textos mais curtos e simples, irei focar, daqui para frente, em uma última e crucial questão, que é discutida em diversos materiais que pesquisamos: a interdição da psicoterapia e a “obrigatoriedade” do trabalho psicossocial no espaço do SUAS e, consequentemente do CREAS. Não é uma questão nova, mas me interessa pensar hoje como isso chega para as (os) profissionais dos serviços. Sobre isso, o autor com o qual estamos dialogando até aqui vai dizer que no CREAS, não raro, a (o) psicóloga (o) é demandada, por diversos órgãos e até por outros equipamentos da Assistência Social, a avaliar o usuário sob o ponto de vista da presença ou não de um trauma e de seu tratamento, inclusive com a pressão e vigilância para obtenção de resultados rápidos e precisos. Eu mesma, enquanto profissional de CREAS, já recebi solicitações similares a essa. Fica clara a dificuldade que ainda se apresenta no que refere-se à atuação psi neste equipamento. Por se tratar de um espaço que atua com situações de violência, ainda se tem uma expectativa de que a Psicologia está ali para “tratar” dos aspectos subjetivos do ocorrido, mesmo que muitas vezes o discurso seja de que não é essa a demanda. Nunca é demais lembrar, como aponta o autor citado, que: Devido a sua complexidade e transversalidade, a construção de uma metodologia de intervenção no CREAS demanda saberes de muitos campos de conhecimento, como a Psicologia, o Serviço Social, a Sociologia, a Ciência Política, a Pedagogia, o Direito, entre outros. (PEREIRA JUNIOR, 2014, p.85) O autor aponta também que a noção tradicional do psiquismo encapsulado, que compreende o indivíduo separado da sociedade não abarca a atuação da (o) psicóloga (o) no SUAS e
Da adesão à participação: repensando nossa relação com as(os) usuárias(os) do SUAS

Por Lívia Soares de Paula* Desde o lançamento da Campanha de Combate ao Preconceito contra a Usuária e o Usuário da Assistência Social, lançada pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) e pelo Fórum Nacional de Usuárias e Usuários da Assistência Social (FNUSUAS) em dezembro de 2017, venho refletindo continuamente sobre a relação estabelecida entre nós, trabalhadoras (es), e as (os) usuárias (os) da política de Assistência Social. Veja também o texto que já publiquei aqui: Preconceito de quem? Algumas inquietações sobre as relações entre trabalhadores e usuários no SUAS. Nesta relação, um dos desafios diz respeito a participação (ou não) das (os) usuárias (os) nos atendimentos e atividades propostas nos nossos equipamentos. Este assunto é recorrente nos espaços de discussão sobre nossa atuação no SUAS e a escrita deste texto sobre ele foi sugerida por uma colega assistente social que, ocupando um destes espaços, se viu provocada a refletir sobre o mesmo. No nosso cotidiano de trabalho, em geral não utilizamos o termo participação, mas sim adesão das (os) usuárias (os) nas atividades: “essa família não adere”; “já fizemos de tudo, mas não conseguimos a adesão das famílias”. O uso do termo adesão em detrimento do termo participação já aponta, a meu ver, alguns pontos importantes para iniciarmos nossa conversa sobre a temática. O que vêm à sua cabeça quando ouve a palavra aderir? E quando ouve a palavra participar? Quais as diferenças entre estas duas palavras? Fazendo uma pesquisa simples no dicionário, já nos é possível tecer alguns apontamentos sobre as possíveis definições para as duas palavras. Para a palavra adesão, o dicionário traz: 1. ação ou resultado de aderir, de ligar-se ou estar fisicamente ligado a algo, aderência; 2. postura favorável a uma ideia, movimento, ato, etc; 3. filiação a partido, associação, etc. Para participação, encontramos: 1. ação ou resultado de participar, de fazer parte; 2. associar-se pelo pensamento, pelo sentimento, compartilhar. Este simples retorno às definições me provoca a pensar sobre as duas palavras e suas diferenças. O termo aderir me sugere que estamos olhando para a (o) nossa (o) usuária (o) como um sujeito passivo que irá se “ligar” ao que projetamos para ele. Já o termo participar me coloca diante da imagem de uma (o) usuária (o) ativa (o), que faz parte, que associa-se pelo sentido que o projeto tem para ela (e), que “com-partilha”. A partir disso, faço a nós um convite. Precisamos refletir sobre como olhamos para as famílias e indivíduos que acompanhamos: como sujeitos que aderem ou que participam? Silva (2014) realizou uma pesquisa na cidade de Porto Alegre (RS), com o intuito de conhecer os usuários da política de Assistência Social daquela cidade. Os resultados de sua pesquisa mostram-se muito relevantes para contribuir com o nosso diálogo sobre os questionamentos que coloquei anteriormente. A autora faz um apanhado histórico sobre nosso país e sobre o surgimento e transformação da Assistência Social no Brasil. Menciona nossa cultura política que ainda transveste o direito como benesse e concessão. Tal cultura reforça a subalternidade e afasta a sociedade das relações democráticas. (SILVA, 2014, p. 125) Sob meu ponto de vista, este aspecto é um dos pontos nodais no nosso trabalho junto às (aos) nossas (os) usuárias (os). Não raro, olhamos para as famílias e indivíduos que atendemos como sujeitos que devem se submeter ao que planejamos para eles. Reforçamos a velha lógica assistencialista, na qual o sujeito atendido não é escutado, não é convidado a fazer parte como protagonista de sua vida que é, mas sim colocado no lugar de mero receptor de benesses. Esta constatação me acompanha tantas e tantas vezes, quer seja no meu cotidiano de trabalho quer seja nos espaços de discussão que frequento, que me pergunto: será que é só assim que conseguimos trabalhar? Como essa forma de atuação relaciona-se com nossa própria história de vida e com nossos preconceitos? E porque estamos escolhendo atuar como trabalhadoras (es) de uma política que prima por defender intransigentemente a cidadania como um direito? É urgente que respondamos a estas perguntas. Ao refletir sobre isso, salta aos meus olhos o quão contraditórios temos sido se na teoria defendemos a política de Assistência Social como um direito, mas na prática agimos ancorados na lógica da concessão que nos transporta para um lugar de poder sobre vidas que não são as nossas. Em que nos interessa ter poder sobre a vida de outra pessoa? E de que poder estamos falando? Em sua pesquisa, Silva (2014) se deparou com alguns usuários do SUAS que afirmaram não saber nada sobre cidadania ou sobre sujeito de direitos. Isso reforça ainda mais minhas indagações sobre a contradição que expus acima. Defendemos uma política de direito, mas deixamos passivamente que a (o) usuária (o) nem saiba o que isso significa. E assim, as desigualdades vão se solidificando, com o nosso aval. Eu, trabalhadora e detentora da informação, defino e a (o) usuária (o) executa, “adere”. É urgente que pensemos a esse respeito. Precisamos nos incomodar com isso. Sair do lugar cômodo de quem detém o poder sobre o outro, de quem diz tranquilamente que as famílias não “aderem”. Essa é tarefa que nos está posta: É tarefa primordial da Política de Assistência Social a superação dessa dimensão com caráter clientelista para se afirmar como política que possibilite a construção de direitos, contando com o protagonismo dos sujeitos por ela atendidos. Os elementos conservadores e autoritários, constituintes da formação social brasileira, revelam o quanto a hegemonia das classes dominantes exerce a reprodução das formas de dominação das classes subalternas no país. (SILVA, 2014, p. 145) Eis o nosso desafio. Ao invés de dizermos que nossas (os) usuárias (os) não aderem, é fundamental que reflitamos sobre os embasamentos de nossa atuação. Temos observado e avaliado as políticas setoriais do nosso município, analisando o quão alinhadas elas estão entre si e com as necessidades e demandas dos cidadãos? Temos provocado espaços de diálogo com nossas (os) usuárias (os), nos quais elas (es) possam se sentir à vontade para se expressarem, por meio do estabelecimento
Refletindo sobre os atuais desafios para a escuta de crianças e adolescentes no âmbito do SUAS

Por Lívia Soares de Paula* Olá colegas do SUAS! Como vão vocês? Creio que temos muita gente nova por aqui, acompanhando o Psicologia no SUAS, e muita gente “das antigas” também. É com muita alegria que retomo minha colaboração aqui no Blog, com o desejo de continuar contribuindo, de forma simples e ancorada na minha prática, para as reflexões de quem, assim como eu, atua na Política de Assistência Social. O tema que escolhi para hoje foi motivado pela proximidade do dia 18 de Maio, Dia Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. Todos os anos nesta época, nos mobilizamos para o planejamento de atividades de sensibilização da sociedade sobre o assunto. Ocupamos os territórios, as escolas, abordamos o tema com crianças, adolescentes, famílias, enfim…Colocamos nosso bloco na rua! Trabalhamos a prevenção e a proteção das nossas crianças e adolescentes. E hoje estou aqui para propor algumas reflexões relacionadas à atuação das trabalhadoras e trabalhadores dentro dos equipamentos, quando recebemos os encaminhamentos e/ou demandas espontâneas de situações desta natureza. Antes de colocar nosso bloco na rua, vamos pensar juntas/os como vemos o papel dos equipamentos, em especial do CREAS, no acompanhamento deste tipo de situação? Não sei se é do conhecimento de todas/os, mas em 2017 foi sancionada a Lei nº 13.431/2017, que estabeleceu o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência. Esta lei visou normatizar e organizar o SGD, criar mecanismos para prevenir e coibir a violência e estabelecer medidas de proteção à criança ou adolescente em situação de violência. Se você ainda não conhece, sugiro a leitura da lei na íntegra. Ela tipifica as formas de violência, estabelece direitos e garantias, aborda a integração das políticas de atendimento (estando a assistência social incluída) e conceitua os procedimentos nomeados de Escuta Especializada e Depoimento Especial. Esta lei entrou em vigor no ano passado, decorrido um ano de sua publicação oficial. Também no ano passado, foi publicado o Decreto nº 9.603/2018, regulamentando a Lei 13.431/2017. Neste Decreto detalhou-se alguns aspectos contidos na lei sobre o fluxo e organização do SGD e sobre o Depoimento Especial e a Escuta Especializada. A Assistência Social consta no referido documento como um dos campos, junto com outras políticas públicas, para a realização do procedimento de Escuta Especializada. Embora o Decreto, a meu ver, tenha trago alguns contornos necessários que não haviam sido dados pela Lei, ainda assim sabemos que este é um campo arenoso, que trata de um tema polêmico e espinhoso, no qual ainda encontramos muito mais dissensos que consensos. Há profissionais e órgãos institucionais que defendem nossa atuação direta (enquanto psicólogas/os e assistentes sociais) na prática de inquirição de crianças e adolescentes para fins de responsabilização dos autores das agressões e há profissionais e órgãos que discordam desta proposta como está atualmente desenhada. Tenho meu posicionamento a respeito, alinhado com o posicionamento e as orientações do Sistema Conselhos de Psicologia. Se vocês não conhecem o posicionamento do Sistema Conselhos, vale fazer uma pesquisa no site do Conselho Federal e no site dos seus Conselhos Regionais também. O CRP04, aqui de Minas Gerais, promoveu há um tempo atrás, um Psicologia a Foco sobre este assunto, que continua atual e está disponível na página do Facebook do Conselho. Mas este não é o debate sobre o qual quero me debruçar aqui. Se vocês discordam de nossa atuação nesta seara ou concordam, esse é um assunto para ser debatido em outro momento com toda cautela que o tema requer. Por ora, um dos pontos que me interessa apontar é que, discordando ou concordando, temos, cotidianamente, recebido no SUAS solicitações de escuta destas crianças e adolescentes. Algumas condizentes com o papel dos nossos equipamentos, outras nem tanto. Esta constatação surge através das demandas que têm chegado ao CREAS no qual atuo, através de postagens de colegas do SUAS em grupos e redes sociais e através de conversas com outras/os colegas. Mesmo antes das publicações das leis que citei aqui já recebíamos pedidos de escuta e de averiguação de situações de violência contra crianças e adolescentes. E agora, mais que nunca, tais solicitações estão batendo à nossa porta. Embora isso seja uma realidade, um aspecto que me chama a atenção é que este me parece um assunto deixado de lado nos espaços de discussão sobre o SUAS. Vejo muitos debates no campo da Psicologia Jurídica. Mas no campo da Assistência Social, na minha percepção, ainda falamos pouquíssimo sobre isso. Você pode estar dizendo daí: “claro, isso não nos compete. Não é papel do SUAS inquirir crianças e adolescentes.” Ok. Sabemos disso. Mas, nem por isso, as solicitações deixam de chegar. E aí? Será que a melhor saída é mesmo não falar sobre isso? Minhas observações me trazem a convicção de que a resposta é não. Nos grupos que participo, circulam perguntas como: “alguém já está fazendo a Escuta Especializada? Chegou aqui um pedido e não sabemos como fazer.” “Como fazer para escutar a criança no CREAS? Agora a gente tem que fazer né? Tá na lei.” São várias e várias perguntas. Vários depoimentos e relatos de profissionais sobre a realização desta escuta. E aí eu me pergunto: como será que estamos realizando esta escuta? Utilizando qual metodologia? Embasados em que aporte teórico? Se tiverem claras para vocês essas respostas, compartilhem comigo. Pois são estas observações que me levam a pensar que precisamos falar sobre o tema. Ou melhor, antes de falar, precisamos escutar quem entende e pesquisa o assunto. Trazer essas pessoas para as rodas de conversa sobre o SUAS. Estudar o assunto. Ler a Lei e o Decreto. Procurar o que nossos Conselhos têm falado sobre o assunto. Provocar nossos Conselhos a falar sobre o tema do ponto de vista das Políticas de Assistência Social, Saúde e Educação principalmente. Enquanto isso não acontece de forma efetiva, sugiro que a gente vá bebendo nas fontes da Psicologia Jurídica. Porque se não promovermos reflexões sobre esta questão no âmbito da política na qual atuamos, estaremos fadados
Preconceito de quem? Algumas inquietações sobre as relações entre trabalhadores e usuários no SUAS

Por Lívia Soares de Paula* Em dezembro do ano passado, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) lançou em parceria com o Fórum Nacional de Usuárias e Usuários da Assistência Social (FNUSUAS), durante a XI Conferência Nacional de Assistência Social, a “Campanha de Combate ao Preconceito contra a Usuária e o Usuário da Assistência Social”. Na ocasião, foi apresentado o primeiro vídeo da campanha. Segundo informações do site do CFP, a iniciativa tem por objetivo: provocar o debate sobre questões que perpassam diariamente a vida das pessoas que acessam os benefícios, programas e serviços da Assistência Social. A responsabilização individual pela situação de pobreza, a acusação de vagabundagem e visão de que a situação de vulnerabilidade social é resultado de escolhas são algumas delas.[2] Dando continuidade às ações da campanha, foi realizado um Diálogo Digital intitulado “Vergonha não é ter direitos, vergonha é ter preconceito”.[3] Assistindo a este Diálogo, me vi desafiada a dividir com vocês neste espaço algumas reflexões que me ocorrerem a partir das falas dos convidados. A primeira questão que me ocorreu, a meu ver, revela uma possível contradição. Ao receber a divulgação do Diálogo, de pronto pensei: “preciso ver este evento, ouvimos falar e falamos tão pouco deste assunto”. No entanto, enquanto assistia, me vi pensando no quanto falamos sobre os usuários: “fulano não adere”; “não tem jeito com essa família”; “será que está me contando a verdade?”; “a gente tenta de tudo, mas eles parecem não querer ajuda” … Essas, dentre diversas outras, são frases muito comuns em nosso cotidiano de trabalho. Em minha percepção, estaria aqui revelada a contradição: falamos pouco sobre o assunto ao mesmo tempo em que falamos muito sobre os usuários. Muito sobre aquilo que eles não conseguem e sobre as angústias que o contato com eles nos traz. E foi esta constatação que me desafiou a abordar o tema aqui, para que possamos juntos lançarmo-nos algumas indagações sobre nossa prática junto ao público da Política de Assistência Social. Um dos pontos importantes e que podem nos apontar indicativos da direção na qual temos caminhado em nossa atuação no que tange a este aspecto, diz respeito à participação dos usuários nas esferas de Controle Social. Os usuários de seu município participam efetivamente dos conselhos de direitos? Sabem o que são estes conselhos? Estão presentes nas conferências? De que forma esta questão é tratada pela gestão e pelos técnicos do equipamento em que você está inserido? Junto a isso, precisamos nos perguntar também sobre como temos conduzido o acompanhamento das famílias que atendemos. Qual é o lugar que as famílias ocupam neste acompanhamento? Como é a construção das estratégias de trabalho em cada situação? Quem participa? Quando temos que redigir algum documento sobre o trabalho realizado, as famílias têm sido consultadas? As respostas a cada uma destas perguntas nos auxiliarão na identificação do cenário no qual estamos trabalhando. Talvez sejam suscitadas novas interrogações. A partir daí tornar-se-á possível falarmos sobre o trabalho junto aos usuários, de forma séria, comprometida e responsável. Na minha percepção, infelizmente, ainda estamos longe disto. Longe disto porque nosso discurso ainda está concentrado em um “sobre o usuário” que, na maioria das vezes, não inclui um “com o usuário”. E não podemos negar que este discurso “sobre o usuário” está, em muitas circunstâncias, carregado de preconceito. Isto posto, constato que, diante da campanha que norteia este texto, é impreterível que nos indaguemos: Preconceito de quem? E quando o preconceito parte de nós mesmos, trabalhadores do SUAS? Esta foi uma das questões levantadas no Diálogo realizado pelo CFP. E é de fato uma questão delicada: será possível trabalhar o preconceito da sociedade em relação aos usuários sem antes trabalhar os nossos próprios preconceitos? Será que nosso discurso sobre o usuário nos aproxima ou nos distancia dele? Para refletir um pouco mais sobre isto, proponho que façamos um exercício. Suponhamos que, depois de compartilharmos nossa história com uma pessoa, presenciemos esta mesma pessoa conjecturando e lançando hipóteses sobre o porquê agimos de determinado modo e não de outro, o porquê temos determinadas dificuldades. Sem nos consultar, a pessoa está dedicada a construir uma teoria sobre nós. Suponhamos que, após este momento, a pessoa traga ao nosso encontro (ou seria ao nosso confronto?), de forma pronta, as “soluções” que ela está certa que resolverão as dificuldades que compartilhamos. Como nos sentiremos? Não raro, é esta a atitude que temos frente aos nossos usuários. Fazemos conferências para deliberar sobre ações direcionadas a eles, sem que eles estejam efetivamente presentes. Individualizamos e psicologizamos suas dificuldades, esquecendo as especificidades de cada contexto em que estão inseridos. Não ouvimos suas vozes. Desmerecemos o que eles nos apresentam. Não valorizamos o seu saber. Neste momento, estamos servindo a quem? Sem ações emancipatórias legítimas, engrossamos o caldo da benevolência, da caridade, da assistência social como “favor”. Já vivenciei e me incomodei muito com situações nas quais o usuário nos agradece por aquilo que fizemos “por ele”. Cada vez que um usuário me agradece por aquilo que fiz “por ele”, me questiono: será que não consegui, de novo, fazer “com ele”? Volto ao Diálogo Digital instigador deste texto: estamos conseguindo trabalhar junto aos nossos usuários a noção de que não é vergonha ter direitos? Muito já foi dito sobre o quanto a Política de Assistência Social nos convoca a repensar nosso papel enquanto profissionais. E os desafios frente a este assunto também nos convocam a prosseguir repensando. Nosso suposto saber precisa ser deixado de lado. Ele nos coloca distantes dos nossos usuários. O saber que pode ser fermento para a emancipação precisa ser construído no entre, na relação que estabelecemos com as famílias que atendemos. Nesta relação não pode caber verticalidade. Sobre a escuta das pessoas atendidas na Política de Assistência Social, Silva (2014) afirma: […] Uma escuta que dê voz, que revele, realmente, a expressão da palavra aos sujeitos de sua história […] É importante que seja um espaço onde o protagonismo assuma seu efetivo exercício político de cidadania na complexa trama das relações sociais. (p.153) Sendo
O desafio do trabalho coletivo no SUAS

Por Lívia Soares de Paula e Tatiana Borges[1] Psicóloga do CREAS de Itaúna/MG e Assistente social na regional Franca do estado de SP No último texto de 2017, publicado em novembro aqui no Blog, propusemos uma discussão acerca dos desafios que se apresentam nas relações entre CRAS e CREAS. Muitas foram as manifestações dos colegas do SUAS a respeito da importância de discutirmos este assunto e das dificuldades para que esta discussão aconteça de forma efetiva e produtiva. Sendo assim, optamos por tentar avançar um pouco nas reflexões sobre esta temática. Considerando que a colega colaboradora Tatiana Borges também abordou este assunto em um de seus textos[2], surgiu o desejo de estabelecermos uma parceria na escrita desta colaboração. Esperamos que, em meio a tantas ameaças que as políticas públicas têm sofrido, nossas pontuações possam contribuir para renovar as energias daqueles que, assim como nós, continuam acreditando na potência da atuação no Sistema Único de Assistência Social. Dentre muitas das manifestações a respeito do texto anterior, alguns profissionais expuseram sua insatisfação diante do acúmulo de trabalho em seu cotidiano. Vemos que este é um tema recorrente no âmbito dos técnicos do SUAS. E é exatamente por isso que nos interessa lançar a nós mesmos algumas perguntas: o que tem nos acumulado? Como temos olhado para este excesso de tarefas? O que nos é possível fazer diante do cenário que está desenhado em nosso equipamento neste momento? Pode ser que nas respostas a tais perguntas, apareçam os inúmeros problemas que temos: desvalorização da política; a velha lógica assistencialista; falta de interesse e conhecimento de quem gere nossos serviços; demandas que não são nossas; demandas que são nossas, mas que escancaram nossa impotência, entre outras coisas. Diante destes problemas, a angústia é tão grande que às vezes nos cega e produz desesperança. Nos sentimos sozinhas/os e desamparadas/os. Essa sensação não é injustificada. Ainda esperamos por soluções individuais, tanto para nós, profissionais, quanto para as/os as/nossos usuárias/os. Ainda trabalhamos no caso a caso, no um a um. Falamos sobre coletividade, mas parece que ainda não sabemos o que isso significa. E quando nos aproximamos de qualquer iniciativa que remeta a ela, nos assustamos. A ideia de coletividade nos convoca a aprender a estar com. Existirá exercício mais desafiador que este? Se começar a refletir sobre a coletividade já nos causa inquietação, imagina só a proposta de realização de um trabalho coletivo com famílias e indivíduos no território em uma ótica emancipatória? Pois bem, esta é a intencionalidade presente na política de assistência social e se isto causa medo, podemos dizer que estamos juntas/os. Mas não juntas/os apenas no reconhecimento de que nosso excesso de serviço nos impede até de dialogar com nossos pares, queremos estar juntas/os para refletir sobre isso e, ao mesmo tempo, atuar numa perspectiva modificadora da sociedade. Afirmamos que se trata de uma perspectiva modificadora porque temos clara a realidade individualista em que vivemos, na qual bens universais e coletivos não são valorizados e a indiferença com o que se imagina não dizer respeito a “si próprio” impera. Sabemos que trabalhar na linha de frente de uma política pública e desenvolver um trabalho social exige conhecimento teórico-metodológico, competência técnica-operativa e, principalmente, coragem para mudar, encarar o medo e enfrentar o grande desafio que é nadar contra correnteza. Em uma sociedade individualista, onde cada cidadão é visto como “culpado” pela sua condição social, independente de sua classe, gênero ou etnia, onde cada pessoa, individualmente, é responsável por cuidar da própria vida, estando ou não desprotegida, estando ou não vulnerável, estando ou não exposta às mais variadas formas de risco social, observamos que as políticas públicas não são fortalecidas. O não fortalecimento das políticas públicas, em nosso entendimento, aponta para o desafio que estão sujeitos todos aqueles envolvidos no planejamento, gestão e execução dos serviços advindos de tais políticas. Toda pessoa que trabalha em determinada política assume um compromisso social de extrema relevância. É este compromisso ético-político que, muitas vezes, nos convoca a refletir sobre nossa atuação e a repensar o modo como trabalhamos. Compreendemos que não é fácil mudar hábitos e pensamentos, não é fácil mudar a rotina de trabalho e nos organizarmos em equipes com objetivos comuns, dialogando e compartilhando saberes, mas as experiências de pessoas que ousaram nadar contra a maré podem nos ser fonte de inspiração e admiração, por nos apresentarem o novo e serem bastante produtivas. Sabemos que não é nada simples primar pela construção de um trabalho coletivo, mas cremos que é consenso de boa parte de nossos colegas do SUAS que o trabalho isolado e personalizado que, infelizmente, ainda executamos em nossos serviços, revela-se fonte de grande angústia e até de adoecimento, além de não apresentar, na maioria das vezes, os resultados que esperamos. Esta constatação não despreza a importância das nossas ações em cada situação que acompanhamos, mas será que não podemos avançar? Cremos que, em algum momento, é preciso haver a transição do individual para o coletivo, pois, nem mesmo uma equipe de referência completa e multidisciplinar dará conta do atendimento de todas as solicitações no trato “um a um”. As premissas do SUAS exigem de nós, profissionais e gestores/as, um esforço a mais e isto não quer dizer que estamos fechando os olhos para as inúmeras dificuldades que enfrentamos, nem para as situações restritivas e negativas do trabalho em equipe, interdisciplinar e coletivo. Mas o fato é que só se garante ou conquista direitos sociais na coletividade e a História confirma esta assertiva. Assim, atuar como profissionais de referência em uma política pública já nos coloca contra a maré e assumir a incumbência de realizar um trabalho coletivo é, de fato, nadar contra a correnteza, o que não se configura como algo simples. No entanto, sabemos que o lugar que as águas nos levam é o que mantém as coisas como estão, podendo retroceder cada vez mais. O inconformismo com a realidade à nossa volta nos impulsiona a assumir o desafio de tentar chegar à fonte. A maré é o acúmulo de trabalho
CRAS versus CREAS: que trabalho conjunto é esse?

Por Lívia de Paula Já havia anunciado em texto anterior “Profissionais do SUAS: Qual a bandeira que nos une?“, que, atendendo à sugestão de uma leitora do Blog, trataria aqui das relações entre os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e os Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS). Esta é a proposta do texto deste mês: iniciar algumas reflexões sobre nosso trabalho nestes equipamentos e sobre como temos feito as interlocuções entre os equipamentos em nossos municípios. Comecemos pelo básico. O que dizem as normativas do SUAS sobre o que compete ao CRAS e ao CREAS? Vejamos alguns pontos. Segundo a Política Nacional de Assistência Social (PNAS, 2005), a Proteção Social Básica (PSB), a qual é referenciada pelos CRAS, visa a prevenção de situações de risco e o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários. Já a Proteção Social Especial (PSE), referenciada pelos CREAS, demanda procedimentos que visem o apoio a indivíduos e famílias que se encontrem fragilizadas e/ou em risco diante de situações nas quais seus direitos foram violados. (PNAS, 2005) De forma bastante sintética, desenhamos então a linha tênue que nos separa e que nos faz repetir inúmeras vezes as perguntas: houve violação de direitos? É do CREAS ou do CRAS? Como se o nosso trabalho fosse uma equação matemática, dedicamo-nos a estas perguntas com tanto afinco, esquecendo, por vezes, o nome dos usuários, as peregrinações que eles fazem pelos inúmeros serviços da rede pública (não apenas pelos serviços da Assistência Social) e o desgaste e a revitimização a qual ficam expostos cada vez que contam a sua história para um profissional diferente. A busca por uma resposta objetiva que defina qual equipe tem a obrigatoriedade de acompanhar cada família faz com que nos distanciemos cada vez mais dos objetivos do nosso trabalho. Não estou aqui negando a necessidade de que cada equipamento saiba o seu papel, suas competências e limites dentro do que é recomendado para a execução do trabalho pertinente ao SUAS. É primordial que as equipes saibam o que lhes compete, fortifiquem-se e trabalhem alinhadas com as orientações da Política de Assistência Social. O que me preocupa é a forma como temos utilizado esta definição de competências. Em minha percepção, temos dificultado o diálogo e as discussões que poderiam nos levar a um consenso e a efetivação de um trabalho de parceria entre os dois equipamentos. Distanciados dos objetivos do SUAS, corremos sério risco de empobrecer nossa prática, fazendo com que ela se torne mera identificação ou não de violação de direitos, aproximando-nos mais uma vez da lógica policialesca de averiguação, baseada na lógica binária que objetiva as relações entre os indivíduos. Não é raro ouvir de colegas trabalhadores a seguinte afirmativa: se tiver violência comprovada, é CREAS. Do contrário é CRAS. Ao que me ocorre sempre as questões: o que estamos chamando de comprovação de violência? Violência comprovada por quem? E para quê? Quanto tempo a família terá que esperar para ser acompanhada até que seja entendido se houve ou não violência? Por tudo isso, creio ser urgente que repensemos nossa forma de interpretar a organização que delineia nossa atuação enquanto profissionais da Política de Assistência Social. Não há linha tão rígida que separe prevenção de proteção. Se acaso ela existisse, já a teríamos identificado, tantos são nossos esforços dispensados nisso. O diálogo horizontal entre CRAS e CREAS é o único recurso que pode possibilitar um trabalho efetivo no âmbito do SUAS. O usuário não pode ser de um ou do outro. O usuário é do município. E de todas as políticas públicas do município. Isso implica na construção de fluxos de referência e contrarreferência entre os diversos equipamentos do município, mas especialmente na construção deste fluxo entre os CRAS e os CREAS. De acordo com BATISTA E COUTO, A referência e a contrarreferência é um sistema onde um serviço articula com o outro levantando importantes informações sobre o indivíduo e trabalhando de acordo com as peculiaridades de cada caso […] Os serviços e atendimentos são complementares, é um processo dialético em constante formação, ou seja, através do diálogo e em contato com a rede, numa troca de informações construindo novos pensamentos, conceitos, saberes e se adequando as [sic] demandas. (p.18) A complementariedade das ações é algo imprescindível no que diz respeito à nossa atuação frente a demandas tão complexas quanto as que chegam aos nossos equipamentos. Situações de vulnerabilidade, risco iminente, suspeitas de violência são demandas que nos exigem o planejamento e a execução de ações que garantam às famílias a possibilidade de fortalecimento de seus laços e a reorganização das relações entre seus membros. Estando o CRAS no território e conhecendo a realidade daquela população, configura-se como aliado essencial para o trabalho a ser desenvolvido pelo CREAS. Assim como o CREAS pode ser parceiro importante para o CRAS, por conhecer de forma mais aprofundada as violações de direitos vivenciadas pelos indivíduos e famílias que acompanha, auxiliando o CRAS a traçar e efetivar suas estratégias de prevenção destas violações em seu território de referência. É nesta relação dialógica que teremos estabelecido o real trabalho do SUAS. Cabe lembrar o que fica também esquecido diante do dilema CRAS versus CREAS: somos parte de uma só equipe, a equipe de Trabalhadores da Política de Assistência Social, e responsáveis, antes de tudo, pela operacionalização dos preceitos que regem a Política. Como equipe do SUAS, precisamos ter um propósito comum, mesmo que os focos dos nossos trabalhos sejam diferentes, no que tange à organização dos serviços. CRAS e CREAS precisam compartilhar seus objetivos e responsabilidades, fazendo com que, de fato, nossa bandeira seja a mesma. Tomando emprestado o lema da 12ª Conferência Estadual de Assistência Social de Minas Gerais, enfatizo que o momento político do nosso país exige que não nos apartemos, que estejamos juntos na defesa do SUAS, pois, mais do que nunca, precisamos “ORGANIZAR, LUTAR e RESISTIR”. Que estejamos unidos em nome daquilo que acreditamos, em nome do protagonismo dos nossos usuários. Que sejamos todos, profissionais de CRAS, CREAS e dos demais equipamentos,
Violação de Direitos no âmbito do SUAS: E os autores de violência, onde cabem?

Por Lívia de Paula* No mês de maio deste ano, discutimos aqui neste espaço algumas questões concernentes ao nosso fazer enquanto trabalhadores do SUAS frente às situações de violência sexual infanto-juvenil – Leia aqui ⇒Violência Sexual Infanto-Juvenil no SUAS: das demandas de urgência ao “urgente” repensar do nosso fazer Apontamos a cautela que se faz necessária no trabalho de acompanhamento de tais situações, especialmente no que diz respeito às solicitações de averiguação da veracidade dos fatos relatados pelas famílias e indivíduos por nós atendidos. Também mencionamos que a urgência de punição dos autores das violações, algo que é assunto bastante comum nos corredores dos equipamentos da Proteção Social Especial – PSE, não necessariamente conduz a um processo de responsabilização dos mesmos. Partindo destes dois aspectos, tentaremos hoje pensar um pouco a respeito do lugar que as pessoas autoras de violência têm ocupado em nossas concepções sobre a Política de Assistência Social e em nossa prática nos serviços. Cremos que esta reflexão é um convite importante para os profissionais da PSE, mas que também se revela agregador para aqueles que atuam na Proteção Social Básica – PSB. O documento “Orientações Técnicas: Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS”, publicado em 2011, pelo Ministério do Desenvolvimento Social – MDS, deixa claro, em vários trechos, que o papel dos técnicos deste equipamento não deve ser confundido com o papel das equipes dos órgãos de defesa e responsabilização. O SUAS não pode configurar-se como um espaço de apuração de denúncias de violação de direitos. Sendo assim, as ações investigativas em relação aos autores de violência não compõem nossas atribuições. Sabemos disso e sabemos também da nossa luta incansável para que este entendimento chegue aos mais diversos órgãos com os quais nos relacionamos, especialmente a órgãos como: Conselhos Tutelares, Ministério Público, Delegacias, Poder Judiciário, entre outros. Estando claro que os equipamentos da Assistência Social não devem se constituir enquanto espaços de averiguação e muito menos de punição dos autores das violações, fica a pergunta: Isso significa dizer, então, que essas pessoas não cabem no SUAS? No que tange ao nosso trabalho de prevenção, proteção e defesa de direitos, não há lugar para eles? Até o momento, me parece que não temos nos dedicado a pensar sobre isso. Sempre que tratamos do tema, os relatos de experiências de trabalho, nos serviços da Política de Assistência Social, envolvendo autores de violência é escasso. Se pensarmos nas violações contra idosos ou contra mulheres, ainda encontramos algumas tímidas narrativas. Mas se adentrarmos na especificidade das violências de cunho sexual, provavelmente será difícil encontrarmos notícias sobre este tipo de prática. Aproveito, então, para convidar vocês, leitores do Blog, a nos contar caso conheçam alguma prática, na esfera do SUAS, que tenha este foco. E quais os motivos de estarmos tão focados nas vítimas, relegando o cuidado aos autores de violência à invisibilidade? Não fazem eles parte das famílias que acompanhamos? Creio ser bastante pertinente refletirmos sobre estes pontos se estivermos de fato comprometidos com o enfrentamento das situações de violência, qualquer que a sua tipologia (violência contra a mulher, violência infantojuvenil, violência de gênero, entre outras). Entendendo que este é um tema que nos desafia, considero primordial, para esta reflexão, começarmos pensando sobre nossa visão a respeito da relação vítima-agressor, buscando identificar nossos valores e possíveis preconceitos. Através de tal identificação, será possível deixarmos de lado interpretações pré-concebidas que podem representar empecilhos para uma prática que se efetive realmente engajada com a ruptura dos ciclos de violência nos contextos familiar e comunitário dos usuários que atendemos. Além desse aspecto pessoal, é essencial considerarmos a possibilidade de não estarmos devidamente qualificados para a atuação junto a este público. Não há como negar que esta é uma prática que pode nos tirar da nossa zona de conforto, convocando-nos à reinvenção de nosso modo de trabalho. Entendemos que não é tarefa simples pensar em trazer os autores de violência para a “roda” do SUAS. Mas quando pensamos em desistir diante do quão árdua se faz a proposta, surgem dois questionamentos que nos convocam a encarar a empreitada: O que estamos dizendo quando deixamos de compreender a experiência da violação também pelo viés do seu autor? Quais as implicações da invisibilidade do cuidado aos autores de violência no âmbito do SUAS para nosso propósito de ruptura dos ciclos de violações, nas famílias e territórios acompanhados por nossos equipamentos? A meu ver, ainda se faz distante vislumbrarmos algum avanço no que concerne a esta temática. As possibilidades e caminhos ainda nos parecem imensamente obscuros. Mas espero que este texto possa nos despertar para esta questão, tão esquecida em nosso dia a dia de trabalho. Para nos inspirar um pouco mais, compartilho duas instituições que atuam desenvolvendo projetos relacionados à prevenção e enfrentamento das situações de violência, nos quais também são foco os autores dessas situações: o Instituto Noos (Rio de Janeiro) e o Instituto Albam (Belo Horizonte). Acessem os sites, conheçam o trabalho por eles desenvolvido. Quem sabe algum de nós não será inovador em alguma iniciativa parecida na esfera da Política de Assistência Social? Referências Bibliográficas: BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Orientações Técnicas: Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS. Brasília, 2011. Imagem inserida pela Editora do Blog: “Judite decapitando Holofernes” de Artemisia Gentileschi. Disponível em:http://www.bbc.com/portuguese/geral-38594660 acessado em 07/09/2017. Veja como citar este texto: ⇒Download do Texto em pdf: Violação de Direitos no âmbito do SUAS: E os autores da violência, onde cabem? Por Lívia de Paula —*Lívia de Paula é Psicóloga do CREAS de Itaúna/MG e colabora mensalmente com o Blog Psicologia no SUAS. Para ler os demais textos da Lívia: Clique aqui
Profissionais do SUAS: Qual a bandeira que nos une?
Por Lívia de Paula* BAIXAR texto em .pdf: Buscando conhecer melhor e qualificar o trabalho dos profissionais do SUAS do Centro-Oeste mineiro, principalmente no que se refere à prática das (os) psicólogas (os), a Comissão de Psicologia e Política de Assistência Social do CRP-MG realizou no último mês de junho, na cidade de Divinópolis, o 1º Seminário Regional dos Trabalhadores do SUAS. Muitas foram as questões suscitadas neste evento, e creio que várias delas poderiam resultar em textos aqui para o Blog. Quem acompanha este espaço há algum tempo, provavelmente já notou que procuro trazer para cá questionamentos que de alguma forma me tocaram a ponto de considerá-los relevantes para serem compartilhados com vocês, colegas da Política de Assistência Social. E é com esta proposta que resolvi escrever hoje sobre um assunto levantado no referido Seminário, que me inquietou de forma bastante provocativa. Como na maioria dos eventos que tratam do SUAS, a grande maioria das dúvidas da plateia girava em torno da identidade profissional da Psicologia na Assistência Social e dos desafios da interdisciplinaridade. Com o propósito de ampliar estas discussões, o conselheiro do CRP-MG, Felipe Tameirão, trouxe algumas importantes considerações e, ao final delas, questionou às palestrantes qual consideravam ser a bandeira que unia os profissionais do SUAS. Na ocasião, a resposta faltou às convidadas da mesa e, acredito eu, faltou a todos nós, participantes daquele evento. Após o término da atividade, a conversa prosseguiu nos corredores e permanecemos na dúvida. Levei o questionamento para casa e aqui estou eu, compartilhando com vocês. Diante da complexidade da pergunta, vamos à procura de alguma direção. O SUAS é bastante amplo, conjuga vários objetivos. Temos a Proteção Social Básica (PSB) e a Proteção Social Especial (PSE). A PSE é dividida em média e alta complexidade. Cada equipamento destas proteções exige de seus técnicos conhecimentos específicos, relativos às suas funções dentro do que é proposto pela política. Essa especificidade, a meu ver necessária para organização dos serviços, pode, dependendo da forma como é compreendida, nos apartar e nos distanciar. É comum ouvirmos a seguinte pergunta: é CRAS ou é CREAS? Os técnicos se olham e a resposta parece distante. Atendendo ao pedido de uma leitora fiel, a relação entre estes equipamentos será tema de um texto a ser publicado aqui nos próximos meses. Por ora, o que se mostra pertinente é pensar sobre o que nos diferencia, e por vezes nos aparta, tentando descobrir o que nos une. A Política Nacional de Assistência Social (PNAS, 2004) nos informa que os objetivos da PSB são alicerçados na prevenção de situações de risco, por intermédio de um trabalho que fortaleça os vínculos familiares e comunitários e que desenvolva o potencial das famílias por nós atendidas. Já no que tange à PSE, o mesmo documento assinala que esta é dirigida às famílias e indivíduos que já se encontram em situações de risco pessoal e social, buscando traçar estratégias que contribuam para uma transformação na vida e nas relações do público atendido. Por este pequeno recorte, apontamos a linha tênue que nos diferencia e que delineia as atividades concernentes à cada uma das Proteções Sociais. A pergunta que continua então é: o que nos reúne? Qual é o nosso grito comum? A querida colega Tatiana Borges nos traz ótimas indicações que podem nos ajudar a responder nosso questionamento em sua última colaboração neste espaço, na qual ela discute os direitos humanos e o trabalho dos profissionais do SUAS – “Cadê o pessoal dos direitos humanos? ” Está no SUAS!. A discussão que ela propõe aponta claramente para a “defesa intransigente dos direitos socioassistenciais”, princípio ético orientador da nossa atuação, conforme a Norma Operacional Básica de Recursos Humanos (NOB-RH/SUAS, 2006) preconiza. Além da defesa de direitos, a mesma norma também diz o seguinte: A Assistência Social deve ofertar seus serviços com o conhecimento e compromisso ético e político dos profissionais que operam técnicas e procedimentos impulsionadores das potencialidades e da emancipação de seus usuários; (p.19) Conjugando as provocações feitas por Tatiana Borges em seu texto com este trecho da NOB-RH, temos alguns termos sinalizadores, que podem iluminar a questão que orienta nossa discussão de hoje: defesa de direitos; compromisso ético e político; potencialidades; emancipação. A partir deles, é necessário que nos façamos algumas perguntas: estamos direcionando nosso trabalho conforme nos sinalizam estes termos e conforme nos orientam os documentos norteadores da Política de Assistência Social? Saímos da lógica da caridade? O que temos hasteado em contraposição à benevolência, característica ainda tão presente nas práticas deste campo? Como construir, a partir dos termos aqui indicados, uma bandeira comum a todos os trabalhadores do SUAS? Qual é a nossa voz enquanto coletivo? Talvez a construção desta bandeira, a partir da qual todos os profissionais da Política de Assistência Social possam se sentir identificados e representados como grupo, pareça tarefa difícil, já que somos muitos, de variadas categorias profissionais e distintas formações. Porém, talvez também seja essa tarefa que vai tornar possível aquilo que almejam os que se reconhecem como peças fundamentais para as engrenagens do SUAS: o fortalecimento da Assistência Social enquanto uma política de proteção, promoção e defesa dos direitos socioassistenciais. Sendo assim, não nos esqueçamos de continuar os nossos diálogos. Não releguemos essa pauta a segundo plano. Que cada um traga sua linha para essa costura. Que teçamos, fio a fio, o nosso estandarte. É ele que nos fortalecerá enquanto grupo. É ele que nos conduzirá rumo à Assistência Social que queremos. Para finalizar, deixo para vocês as palavras de Vasconcelos (2005), que ilustram de modo provocador o desafio da construção de uma luta coesa no âmbito do SUAS: […] a estrutura mais geral dos mandatos sociais das profissões, a competição inter-corporativa e a formação universitária geralmente tendem a assumir uma lógica corporativista, de saberes especializados e exclusivos, como forma de preservar o capital simbólico e as atribuições privativas, na luta competitiva com as demais profissões. Muitas vezes, o resultado disso é que é deixada aos próprios profissionais a árdua tarefa de reunir os cacos das
SUAS e Conselho Tutelar: para que serve a crítica?

Por Lívia de Paula* No contexto de trabalho da Proteção Social Especial, especificamente nos acompanhamentos que envolvem violação de direitos contra crianças e adolescentes, um dos nossos parceiros mais importantes é o Conselho Tutelar. É bastante comum em capacitações, encontros e rodas de conversa dos profissionais do SUAS ouvirmos falas, as mais variadas, sobre a relação que é estabelecida com este órgão e sobre como esta relação tem impacto sobre as ações que desenvolvemos. Tais falas vão desde críticas ferrenhas à forma de funcionamento e posicionamento dos conselheiros até inquietações e reflexões sobre quais as possibilidades de se estabelecer um trabalho de efetiva parceria. É sobre isto que vamos dialogar neste texto. Pensem aí: como vocês têm olhado para o(s) Conselho(s) Tutelar(es) do seu município? Qual é a sua visão sobre os profissionais que ali trabalham? Vamos começar a conversa tentando compreender um pouco quais são as atribuições do Conselho Tutelar, segundo o Estatuto da Criança e Adolescente (Lei 8069, de 13 de julho de 1990). De acordo com o ECA, em seu artigo 131: “O Conselho Tutelar é órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos nesta lei”. Como órgão permanente e autônomo, não pode ter seu trabalho descontinuado em nenhuma hipótese. É importante ressaltar que, apesar de ser um órgão público municipal, o Conselho Tutelar não é subordinado a nenhuma secretaria ou outra instância, sendo independente para aplicar as medidas de proteção que lhe competem e que estão elencadas no art. 136 do ECA[i]. Suas deliberações só podem ser revistas pela autoridade judiciária, conforme redação do artigo 137 do mesmo estatuto.[ii] Através desta pequena amostra de alguns aspectos que definem o trabalho dos Conselhos Tutelares, vemos o quanto a tarefa destes profissionais é de grande responsabilidade e impacto na vida das crianças, adolescentes e de suas famílias. Por isso, boa parte das críticas que ouvimos têm sua justificativa pautada na falta de qualificação daqueles que assumem esta função e do quanto este trabalho exercido de forma pouco preparada pode, ao invés de proteger, acabar contribuindo para a perpetuação das situações de violação contra crianças e adolescentes. Poderíamos falar aqui também de vários outros pontos, que nos preocupam no que tange ao trabalho destes órgãos: falta de planejamento das ações, sobrecarga de tarefas, ausência de condições mínimas de trabalho (local adequado para atendimento, veículo e outros equipamentos necessários para garantir uma atuação eficaz, respeitosa e ética), entre outros. Porém, não vamos nos ater a isso, pois a proposta da nossa conversa aqui é outra: agora que já consultamos o Estatuto da Criança e Adolescente e já nos informamos um pouco a respeito do trabalho do nosso parceiro, vamos pensar qual pode ser a nossa contribuição nesta história? Estamos falando de parceria. Parceria é trabalhar com. E aí, eu me pergunto: quando procuramos o Conselho Tutelar, qual é o nosso objetivo? Creio ser esta uma indagação imprescindível para refletirmos sobre como podemos estabelecer um trabalho intersetorial. Será que, quando pensamos em acionar este órgão, estamos dispostos a conhecer e a compreender o trabalho e os desafios que o(s) Conselho(s) Tutelar(es) enfrentam em sua rotina? Infelizmente, o que vejo na prática é algo muito distante disto: serviços que não se comunicam, profissionais que não se entendem e que não se mostram abertos a ouvir quaisquer pontuações que pareçam divergentes das suas. Como resposta a estes ruídos comunicacionais, sobram críticas aos serviços e aos profissionais que deveríamos ter como nossos principais parceiros. Sabemos que o Conselho Tutelar figura entre os primeiros da lista dos equipamentos mais criticados e mais apontados como incompetentes por nós, técnicos da Política de Assistência Social. Você, caro leitor, pode estar aí pensando: mas tem muita coisa errada mesmo, como não criticar? Porém, a questão que me interessa aqui é como temos nos utilizado dessas críticas em nossa atuação. Até então, tenho visto que elas acabam servindo apenas como grandes entraves para a efetivação de um verdadeiro trabalho em rede. Não só no que diz respeito às relações com os Conselhos Tutelares, mas com os mais diversos atores que podem compor a nossa rede intersetorial. Partindo desta constatação, faço a todos nós um convite a reflexão: as nossas críticas têm servido para transformar a nossa realidade? Ou, no momento em que critico, esqueço que sou corresponsável pela realidade na qual estou inserida? E sem mergulhar nessa realidade, sem conhecer de perto os desafios que o meu parceiro – no caso do nosso texto, o Conselho Tutelar – enfrenta, será que é possível a construção de algum trabalho conjunto? Sobre esta questão, Njaine et al (2007) trazem valiosas contribuições: […] para a eficácia da ação em rede são necessários alguns requisitos que se constroem no processo: horizontalidade dos setores; representação de diversas instituições por intermédio de seus líderes; corresponsabilidade de trabalho; divisão de recursos e informações; autonomia das instituições parceiras para decidir, planejar, executar ações que visem à coletividade; capacidade de incorporar novas parcerias e permitir a saída de instituições ou pessoas; e sustentabilidade. Estes aspectos por si sós não garantem um movimento exitoso, mas são ao mesmo tempo pré-requisitos e parâmetros de ação. Os problemas que mais prejudicam o trabalho em rede são: disparidade de compreensão; divergências políticas; vaidades pessoais; conflitos de papéis entre as entidades participantes; rotatividade dos profissionais que atuam nas instituições parceiras; diferentes ritmos de trabalho; e incompatibilidade de quadros referenciais de vida.[iii] Se queremos e precisamos trabalhar com, é necessário inaugurar um novo olhar. É necessário baixar as armas e colocar nossas necessidades individuais em suspenso. Não é só o Conselho Tutelar que tem problemas. O SUAS também os tem. Aos montes. Principalmente neste momento que estamos vivendo, de direitos e políticas ameaçadas. Diante dos problemas, temos dois caminhos: a lamúria e a crítica vazia ou a crítica propositiva que nos auxilia na construção de caminhos e estratégias. Antes de atirar a primeira pedra, visite o Conselho Tutelar do seu município. Mas proponha a si mesmo uma visita diferente. Vá
Violência Sexual Infanto-Juvenil no SUAS: das demandas de urgência ao “urgente” repensar do nosso fazer

Por Lívia de Paula* Em meu primeiro texto neste espaço, publicado no ano passado, contei um pouco da minha trajetória de inserção na Política de Assistência Social[i], abordando como iniciei minha atuação no extinto Serviço Sentinela, que tinha como foco o atendimento às crianças e adolescentes vítimas de violência sexual e suas famílias. Foi a partir desta inserção, na tentativa de qualificar o meu trabalho, que fui me aprofundando nos estudos desta temática, a meu ver, tão complexa e desafiadora para os mais diversos profissionais com ela envolvidos. Posteriormente, como também contei lá, as ações daquele Serviço foram incorporadas ao trabalho do CREAS, órgão no qual estou inserida atualmente. Com esta incorporação, o escopo do trabalho com crianças e adolescentes foi ampliado, pois o CREAS deve atender a qualquer tipo de violação contra este e outros públicos, e não somente às violações de cunho sexual. Apesar disso, no município em que atuo, constato que a grande maioria dos encaminhamentos que chegam ao equipamento continuam sendo de situações envolvendo crianças e adolescentes vítimas de algum tipo de violência sexual. Não sei bem ao certo a razão disso. Talvez esteja relacionada com a gênese do trabalho, quando da criação do Serviço Sentinela. Esta é uma hipótese. Mas esta constatação me traz uma curiosidade: como é isso nos municípios de vocês? No que tange à criança e adolescente, qual é o tipo de violação que mais chega à PSE (Proteção Social Especial)? Me interessa saber e creio ser uma pesquisa interessante, que pode até produzir um ótimo papo para outro texto aqui no Blog. Por ora, vamos falar de violência sexual contra crianças e adolescentes no contexto do SUAS. Este é o chamado que o mês de maio nos traz, com a marca do dia 18: “Dia Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes”, data na qual nos mobilizamos de muitas maneiras para falar do assunto e sensibilizar nossos territórios sobre o mesmo[ii]. Debruçar-me sobre esse tema tão caro para mim, tendo em vista minha trajetória, não se revela missão fácil, embora possa parecer. Há muito para se falar sobre violência sexual. Há muito ainda que se falar sobre violência sexual. Cotidianamente me vejo refletindo sobre o quanto ainda precisamos aprender, ouvindo nossos usuários, sobre o quanto já dissemos sobre o assunto, mas sobre o quanto ainda precisamos dizer. Esse texto pretende ser um começo. E para começar, precisei então escolher um recorte dentre a vastidão dos aspectos que estão vinculados à questão. E o recorte escolhido para hoje vai conversar muito de perto com as ideias colocadas por Thaís Gomes e Rozana Fonseca, queridas colegas do Blog, em seus últimos textos[iii]. É preciso retomar a pergunta que me parece evidenciada nos textos citados: o nosso trabalho no SUAS serve a quem? Tal questionamento mostra-se extremamente pertinente quando falamos de violação sexual infanto-juvenil. Apesar de inegáveis avanços, percebo que este tema ainda se apresenta carregado de desconhecimento, preconceitos, “certezas” e “boa vontade”, inclusive nas posturas dos profissionais da Assistência Social e de outras políticas intersetoriais. Aliado a isso, este campo revela-se um campo tomado pelas urgências, o que acaba por representar um risco, pois pode nos conduzir para uma atuação carente de reflexão e planejamento e, portanto, pouco ética e técnica. Estas urgências começam no momento da revelação, passando pela denúncia, pelo exame pericial, pelas necessidades de cuidado e proteção e chegando à urgência da “prisão” dos agressores. Propositalmente utilizo aqui prisão para lembrar que prisão e punição não significam responsabilização. E este também é assunto para um bom diálogo em outro momento. Mas, vamos voltar a pensar sobre as urgências. É necessário ressaltar que os primeiros cuidados com as vítimas são realmente da ordem do imediato. E é preciso deixar claro que estes primeiros cuidados são tarefas para o Conselho Tutelar, Delegacias e Hospitais, órgãos responsáveis por tomar as primeiras providências para a garantia da atenção e proteção pontuais. Nesta temática, o que caberia então à PSE, mais especificamente ao CREAS? Qual o nosso lugar frente às situações de violência sexual contra crianças e adolescentes? Vejamos o que nos dizem as “Orientações Técnicas: Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS”, publicadas em 2011, pelo MDS. Esse documento pode nos ajudar a lançar luz sobre isto, quando aponta que o papel da PSE é trabalhar, de forma continuada, potencializando recursos para a superação e prevenção do agravamento das situações que colocam as famílias em risco, no que concerne às violações de direito por elas vivenciadas (BRASIL, 2011, p.18). Para iluminarmos ainda mais nossa questão, caberia então perguntar: se a violência sexual contra crianças e adolescentes aparece como um campo tomado por urgências, qual é a “urgência” que se coloca para nós, técnicos dos CREAS, no acompanhamento destas situações? Considero imprescindível nos fazermos esta pergunta e sairmos à caça de respostas, pois no que se refere ao assunto em foco, há por aí muitos órgãos respondendo por nós. Nosso trabalho é, o tempo todo, confundido com o trabalho dos órgãos de responsabilização, qual seja: a averiguação e a busca de uma “verdade” sobre a violência sexual em tela. Por vezes, somos demandados a atestar se a violação ocorreu ou não ocorreu ou se a criança pode estar fantasiando o episódio, entre outras solicitações que nos chegam. Muitas são as nossas tentativas, em nível individual e coletivo, de estabelecer um diálogo com o sistema de justiça a fim de clarear as possibilidades e limites de nossa prática e efetivar um trabalho de real parceria, no qual não sejamos mais subordinados a ordens arbitrárias ancoradas naquilo que se entende por urgência para o contexto jurídico. As Orientações Técnicas do CREAS nos informam que não cabe ao serviço: Ter seu papel institucional confundido com o de outras políticas ou órgãos, e por conseguinte, as funções de sua equipe com as de equipes interprofissionais de outros atores da rede, como, por exemplo, da segurança pública (Delegacias Especializadas, unidades do sistema prisional, etc), órgãos de defesa e responsabilização (Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria