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Carta de uma psicóloga à vítima de violência sexual

Eunápolis, 18 de Maio de 2019

Às queridas crianças, adolescentes e adultos (especialmente meninas e mulheres)

Resolvi escrever esta carta motivada pela data de hoje a qual marca o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes e principalmente pelas dezenas de comentários que foram deixados em um vídeo (com mais de um milhão de visualização) sobre violência sexual no Canal do Blog Psicologia no SUAS no Youtube. Fiquei pensando em como poderia ajudar vocês, ou melhor, como conversar com vocês. Optei pela carta através do blog porque posso alcançar mais pessoas. Eu escrevo como mulher e como psicóloga. Como mulher quero dividir com vocês meus episódios de violência sexual porque vi que muitas meninas (meninos também) sofrem caladas e espero que meu depoimento encoraja vocês a falarem, a buscarem ajuda. Como psicóloga vou falar tentando alcançar, além de vocês, um responsável familiar ou alguém a quem vocês mostrarão esta carta porque confia muito nessa pessoa. Como psicóloga já escutei experiências absurdamente graves, dolorosas e traumáticas. Meninas ou mulheres com intenso sofrimento psíquico diante de uma violência sexual por atos libidinosos e meninas/mulheres que lidaram sem desenvolver transtornos mesmo diante de passar anos sendo vítima de estupro. Mas há vários pontos em comum entre todas: sofrimento; culpa; dificuldade de relacionamento; insegurança e sobretudo, o silêncio. Eu fui “salva” ao quebrar o silêncio – é por isso que estou escrevendo, para dizer que é preciso falar, contar para alguém. Eu sei, vocês têm medo, têm medo de alguém não acreditar ou de alguém que vocês gostam muito se machucar, mas é preciso falar – alguém vai acreditar em vocês: tente uma, duas vezes ou mais se precisar, mas FALE, ESCREVA, GRITE! Eu também sei que tem grandes chances de que quem está te violentando é conhecido da sua família, um tio/a, primo/a, padrasto/madrasta, ou o próprio pai, mas sei também que ao guardar todo o sofrimento você vai ficar tão abafado, tão triste que você pode não conseguir viver alegre nos momentos de alegria e nem conseguir entrar, lidar e sair de tantos outros momentos tristes da vida. Às vezes se acumulam tanto que você sofre sem saber porque está sofrendo. O tempo vai passando e você pode até esquecer que foi vítima de violência, mas para muitas pessoas isso significa um mal tão grande que fará você lidar de maneira estranha e problemática com a sua vida e com as pessoas em sua volta. Se vocês estão lendo com atenção, já devem estar interessado em saber porque eu disse acima que FALAR sobre a situação me salvou. Vamos lá, estou pronta para te contar como passei pelas situações de violência sexual.

O que já aconteceu comigo

As primeiras situações de abuso sexual ocorreram quando eu era muito pequena, minha irmã tem as memórias sobre os fatos mais preservadas, mas sei que ao ir para escola éramos surpreendidas por um rapaz que se masturbava enquanto passávamos e segundo ela isso acontecia com frequência com outras garotas e ninguém do distrito fazia ou fez nada. Outra situação ocorreu quando íamos levar almoço para meu pai (zona rural) e um rapaz (colega de trabalho do meu pai) surpreendeu a mim e minha irmã nos expondo os genitais. Corremos de volta para casa e contamos para nossa mãe. Minha mãe acreditou imediatamente na gente, pegou o almoço e obrigou meu pai a se a ver com o rapaz. Enquanto escrevo sobre isso vou me recordando de detalhes e agora sei que ao ver como minha mãe lidou com essa situação, me fez ter coragem de contar a ela sobre a mais grave e marcante violência sexual que sofri e que vou contar depois dessa seguinte que foi por volta de 10 anos, onde eu estava dormindo na casa de um tio e mesmo dormindo na mesma cama com minha prima adulta, eu acordei a noite com alguém me passando a mão (era muito escuro e eu não consegui gritar, mas me mexia e aquilo ia embora, mas retornou e quando me movimentei mais bruscamente fiquei livre o restante da noite) sempre achei que fosse um dos primos meninos, mas relembrando agora, parece que foi minha prima, não parece? Olha como é incrível a nossa capacidade de rememoração! Passados 2 ou 3 anos eu fui vítima novamente. Dessa vez a família toda ficou sabendo. Um primo, adulto, trabalhava com meu pai, foi em minha casa em horário que eu estava sozinha e pediu algo como desculpa para estar comigo, ao entregar o objeto ele agarrou os meus seios e ficou tecendo palavras eróticas e fazendo planos para ficar comigo. Eu xinguei e corri. A única coisa que eu queria fazer era contar para minha mãe. Ele não podia continuar como o cara bacana e assim eu correr riscos na próxima vez que estivesse com ele. Minha mãe chegou em casa e logo contei a ela. E foi incrível que ela me respondeu agradecendo por eu ter contado a ela e que daria um jeito de conversar com ele, mesmo meu pai não querendo. Quando o primo chegou para jantar, minha mãe logo abordou o assunto. Eu ouvi tudo do quarto. Eu estava estarrecida ainda e com muita vergonha. A reação dos meus irmãos já não lembro mais, mas lembro da incredulidade da minha irmã e por incrível que pareça ela foi me perguntar se aquilo realmente aconteceu quanto já éramos adultas – e hoje sei que poderíamos ser muito mais próximas na adolescência se ela tivesse acreditado em mim naquela época. Hoje conversamos sobre isso e estamos muito bem! Minha mãe esculachou meu primo, sei que pediu desculpas e se retirou. Vejam só: a maneira que minha mãe lidou com o abuso que sofri fez toda a diferença – por isso tem que FALAR! (sei que você pode não ter uma mãe como a minha, mas alguém vai acreditar em você e fazer a diferença na maneira como você vai lidar com o problema). Até hoje sinto a sensação da minha mãe me defendendo e acreditando em mim. Foi tão potente que considero que foi isso que me salvou de todas as outras vezes em que fui assediada sexualmente, em todas elas tive que agir sozinha. Mas se eu consegui foi porque minha mãe me fez acreditar e compreender que o corpo de uma mulher pertence a ela, somente a ela. Ainda, antes dos 14 anos, sofri outro abuso com tentativa de beijo a força por um servidor público enquanto me levava para uma consulta e vários outros episódios de assédio sexual no trabalho (em todos os meus trabalhos da adolescência e jovem adulta sofri assédio sexual). Em TODOS eles, em dua casas – fui empregada doméstica dos 15 aos 17, como vendedora numa loja (dos 17 aos 22) e depois como auxiliar de escritório na assessoria jurídica de uma autarquia. Eu considero que fui capaz de romper o medo e me posicionar em todas essas investidas violentadoras, mas só pelo fato de estar contando isso para vocês é a prova de que ser violentada, não importa como foi, qual a gravidade, você vai carregar marcas para o resto da vida. Isso pode não influenciar nas suas emoções na vida adulta, mas sempre haverá aquela sensação de vulnerabilidade e risco diante das relações, sejam no trabalho ou nas ruas (e pior que essa situação de vulnerabilidade acontece também com mulheres que não foram abusadas ou assediadas, acontece por elas serem mulheres – posso escrever sobre isso a vocês em outra oportunidade. Eu me livrei de algumas inquietações e angústias sobre essas experiências na análise (terapia), eu misturava as sensações sobre o que era experiência de aprendizado do que era violência. Aqui marco a importância de procurar atendimento psicológico para conseguirem lidar com a violência e seus danos. E tentando concluir essa carta, quero dizer que entendo sua dificuldade em lidar com as ameaças e o medo de contar, mas posso te garantir que tem pessoas que acreditarão em você. Olha a lista: professora; melhor amiga/o, colega da igreja, vizinho que você gosta, mas se realmente você não confiar em ninguém ligue para o número 100 (Disque 100) para denunciar, também tem o Conselho Tutelar e o CREAS. Mas se você que está lendo esta carta já é adulta e sofre por tudo que já passou, procure um tratamento psicológico. Vá se livrar dessa culpa que não é sua. Se você não conseguiu falar, você tem seus motivos e isso é suficiente para nenhum familiar ou profissional te julgar, mas sim te ajudar.

CONTE, FALE AGORA!

Com afeto,

Rozana Fonseca Psicóloga – CRP03/6262


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