Autonomia profissional e o trabalho no CREAS

Por Thaís Gomes * A motivação para escrever este texto surgiu a partir de diversas inquietações sobre o trabalho no SUAS, sobre intersetorialidade, sobre os avanços e recuos na política de assistência social e sobre o desgaste a que estamos submetidos quase que diariamente, especialmente no que se refere a autonomia profissional neste âmbito – um incômodo daqueles que ativam a gastrite – brincadeiras a parte, o sentimento é de que precisamos matar um leão por dia. Sabemos que em nossos locais de trabalho estamos lidando com diversas realidades e especificidades, seja no perfil do município e do público-alvo da política, da gestão, na quantidade e qualidade da oferta dos serviços, na relação com as demais políticas setoriais e órgãos de garantia/defesa de direitos e tudo isso vai impactar de alguma forma a nossa prática profissional. Com este texto convido-os a refletir sobre como tem se dado a relação entre a autonomia profissional, os princípios éticos das profissões que compõe o SUAS, o escopo da política de assistência social e as solicitações de relatórios que são feitas aos equipamentos especialmente pelos órgãos do sistema de justiça. No que diz respeito a autonomia profissional, trabalharei na perspectiva de que esta se manifesta no arcabouço legal normativo da profissão, no caso do Serviço Social como um direito do Assistente Social, expresso no Código de Ética da profissão em seu artigo 2º, alínea h) ampla autonomia no exercício da profissão, não sendo obrigado a prestar serviços profissionais incompatíveis com as suas atribuições, cargos ou funções; e que tem suas atribuições e competências claramente definidas na Lei 8662/93 – Lei de Regulamentação da Profissão. Cabe destacar que extrapola os objetivos desta reflexão um aprofundamento teórico da discussão de autonomia profissional dentro do Serviço Social, para quem se interessar em aprofundar um pouco mais sobre o tema deixo como sugestão o artigo “A relativa autonomia do assistente social na implementação das políticas sociais: elementos explicativos” de Vera Maria Ribeiro Nogueira e Silvana Marta Tumelero. (1) Dito isto, vamos ao que se propõe esta breve reflexão. A NOB-RH/SUAS refere, no que diz respeito aos princípios éticos para os trabalhadores da assistência social, que “a Assistência Social deve ofertar seus serviços com o conhecimento e compromisso ético e político de profissionais que operam técnicas e procedimentos impulsionadores das potencialidades e da emancipação de seus usuários”, além de esclarecer também que “os princípios éticos das respectivas profissões deverão ser considerados ao se elaborar, implantar e implementar padrões, rotinas e protocolos específicos, para normatizar e regulamentar a atuação profissional por tipo de serviço socioassistencial.” Trazendo essa reflexão sobre autonomia profissional e os princípios éticos do trabalho na política de assistência social para o âmbito da proteção social especial de média complexidade, especificamente para o CREAS, apresento algumas pontuações relativas a seu papel no SUAS e na rede de atendimento para posteriormente apresentar as reflexões relativas a autonomia profissional neste contexto. Sabe-se que o CREAS é o equipamento de referência na oferta de trabalho social especializado de caráter continuado a família e indivíduos em situação de risco pessoal ou social, pela ocorrência de violação de direitos. O papel do CREAS e suas competências enquanto órgão da política de assistência social fazem parte de um arcabouço de leis e normativas que fundamentam e definem esta política social e regulam o SUAS, desse modo, devem ser compreendidos a partir da definição da finalidade/objetivos da política do SUAS, ou seja, afiançar seguranças socioassistenciais, na perspectiva de proteção social, conforme descrito nas orientações técnicas do CREAS. O caderno de orientações destaca ainda a importância de se compreender e delimitar quais as competências do CREAS para o desempenho efetivo de seu papel enquanto equipamento do SUAS, para que seja possível elucidar qual seu papel e buscar fortalecer a sua identidade na rede intersetorial e também evitar a incorporação de demandas que competem a outros serviços ou equipamentos da rede socioassistencial, de outras políticas setoriais ou mesmo de órgãos de defesa de direitos. Desse modo, expressa ainda que ao CREAS não cabe “I) ocupar lacunas provenientes da ausência de atendimentos que devem ser ofertados na rede pelas outras políticas públicas e/ou órgãos de defesa de direitos; II) ter seu papel institucional confundido com o de outras políticas ou órgãos, e por conseguinte, as funções de sua equipe com a de equipes interprofissionais de outros atores da rede, como, por exemplo, da segurança pública (delegacias especializadas, unidades do sistema prisional, etc), órgãos de defesa e responsabilização (poder judiciário, ministério público, defensoria pública e conselho tutelar) ou de outras políticas (saúde mental, etc) e por fim III) assumir a atribuição de investigação para a responsabilização dos autores de violência, tendo em vista que seu papel institucional é definido pelo papel e escopo de competências do SUAS” (p.26,27). Porém, como vemos, ainda que esteja claramente delimitado qual é o papel institucional do CREAS e qual é o tipo de trabalho a ser desenvolvido neste equipamento, em nosso cotidiano profissional é muito comum nos depararmos com situações nas quais somos chamados a elaborar relatórios com objetivos que não coincidem com os objetivos do trabalho social na proteção social especial. Vale ressaltar que isto vem sendo recorrente também no âmbito da proteção social básica, conforme tenho visto nos relatos dos profissionais. De acordo com o caderno de orientações técnicas a elaboração de relatórios sobre os atendimentos e acompanhamento das famílias e indivíduos constitui uma importante competência do CREAS, ressaltando que estes não devem se confundir com a elaboração de laudos periciais, relatórios ou outros documentos que possuam finalidade investigativa que constituem atribuição das equipes interprofissionais dos órgãos do sistema de defesa e responsabilização. Quando ocorrer a solicitação é necessário que seja resguardado o disposto nos códigos
Reflexões sobre negligência familiar no contexto da política de assistência social

Por Thaís Gomes* A proposta do texto que ora se apresenta é refletir sobre o uso do termo negligência familiar no contexto da política de assistência social e no dia-a-dia dos profissionais inseridos tanto na proteção social básica como na especial de média e alta complexidade. O dicionário Aurélio define negligência como desleixo; incúria; indolência. É um termo utilizado para descrever situações onde grosso modo alguém deixa de prestar a assistência ou os cuidados necessários a algo ou alguém. No âmbito jurídico negligenciar alguém significa o “ato de omitir ou de esquecer algo que deveria ter sido dito ou feito de modo a evitar que produza lesão ou dano a terceiros” e este uso é o que mais se aproxima da linguagem utilizada pelos profissionais do SUAS na elaboração de seus relatórios, pareceres ou ainda nos estudos de caso em equipe, principalmente no que se refere a situações que envolvam crianças, adolescentes e idosos. No âmbito da proteção social básica por exemplo, casos avaliados como sendo situação de negligência (principalmente familiar) são geralmente encaminhados aos CREAS para que sejam acompanhados pela PSE, cuja oferta dos serviços, programas e projetos de caráter especializado é destinada a famílias e indivíduos que se encontrem em situação de risco pessoal e social por violação de direitos, abrangendo situações como violência física, psicológica e negligência, abandono, violência sexual, situação de rua, trabalho infantil, dentre outras. Essas situações vão requerer um acompanhamento especializado, individualizado, continuado e articulado com a rede. Esses encaminhamentos também podem vir de hospitais, atenção primária na saúde, conselho tutelar, dentre outros equipamentos que compõe a rede intersetorial. Porém, o uso deste termo exige um certo cuidado em sua aplicação, embora seja naturalizado e muito utilizado pelos profissionais da área social, especialmente a negligência familiar. Cuidado, pois, se faz necessário refletir sobre a origem desta negligência, para que não caiamos no erro de culpabilizar famílias sem considerar o contexto maior que as vulnerabiliza e torna a vida mais suscetível a situações de violação de direitos. Freitas et al. (2010) nos chama atenção para a necessidade de reflexão sobre a negligência a que as famílias, geralmente pobres e excluídas de um padrão mínimo de proteção social que lhes garanta qualidade de vida, são expostas em seu dia-a-dia. A negligência por parte do Estado, de acordo com as autoras, se configura na forma de um “silêncio” que prejudica o conhecimento de suas causas e dificulta a realização de ações preventivas que se façam necessárias. As autoras destacam ainda que classificar a categoria negligência demanda todo um esforço e sensibilidade para identificá-la nos contextos em que se apresentam. Apontam para a necessidade de se retirar os fatos e os sujeitos da imediaticidade da situação em que se encontram, visto que em muitos casos a presença da negligência demonstra a situação de vulnerabilidade social da população daquele território. Concordando com o que pontuam Freitas et al (2010), geralmente o encaminhamento das situações de negligência familiar se configura por meio de denúncia de situações como faltas constantes as aulas, roupas rasgadas, falta de asseio pessoal, ausência de cuidados com saúde e alimentação, dentre outros casos. A caracterização destes casos tende a ser carregada de concepções discriminatórias, que recaem especial e principalmente sobre as camadas mais pobres, associando negligência e pobreza, o que favorece de certo modo a criminalização da pobreza e das famílias pobres pela dimensão do social que lhes é atribuída, sendo vistas como “problema social”. Seguindo esta lógica, destacam as autoras “a negligência é imputada a famílias que vivem em situação de miséria, de pobreza e de vulnerabilidade, sendo duplamente perversa, pois a negligência social, por si só, constitui uma grave questão social.” Considerar que a negligência familiar é um fenômeno e que exige dos profissionais inseridos na política de assistência social, pelo escopo da própria política, um olhar atento, sensível e qualificado para que seja elaborada uma avaliação precisa do caso, com destaque para a importância de uma análise interdisciplinar da equipe de referência, é um caminho para romper com o ciclo de culpabilização das famílias, que desconsidera os problemas macroestruturais que as afetam como o contexto político-econômico, o acesso aos direitos sociais básicos, o acesso à informação, dentre outros. Se faz necessário e importante também, desse modo, e de acordo com Mioto (2013), reconhecer a “família com um espaço altamente complexo, que se constrói e se reconstrói histórica e cotidianamente por meio das relações e negociações que se estabelecem entre seus membros, entre seus membros e outras esferas da sociedade e entre ela e outras esferas da sociedade, tais como Estado, trabalho e mercado”. E nesse contexto, entendendo a família como “um processo de articulação de diferentes trajetórias de vida, que possuem um caminhar conjunto e a vivência de relações íntimas, um processo que se constrói a partir de várias relações, como classe, gênero, etnia e idade (FREITAS, 2000, p.8 apud FREITAS et al., 2010) Freitas et al. (2010) pontua ainda que falar sobre famílias significa pensá-las em suas relações tanto com a sociedade mais ampla onde se insere como também nas formas como elas se atualizam na vida diária das pessoas que lhe dão concretude e, nesse sentido, citam e concordam com Pereira (2007) no entendimento de que as políticas voltadas para as famílias devem ser “ um conjunto de ações deliberadas, coerentes e confiáveis, assumidas pelos poderes públicos como dever de cidadania para produzirem impactos positivos sobre os recursos e a estrutura da família.” Destacando ainda que o objetivo da política social em relação à família deve ser o de oferecer-lhes alternativas realistas de participação cidadã, entendendo que é dessa forma que as ações existentes na política nacional de assistência social e no sistema único de assistência social devem se relacionar com as famílias, levando em conta a matricialidade sociofamiliar como um dos eixos estruturantes do SUAS. As reflexões sobre a utilização do conceito de negligência familiar no âmbito do SUAS não se esgotam neste texto sucinto mas nos convidam a refletir sobre nosso fazer profissional e sobre a nossa
Direção social, elaboração de relatórios e o trabalho na proteção social especial

Por Thaís Gomes* O trabalho na proteção social especial provoca múltiplas reflexões nos mais diversos âmbitos tais como as formas de se trabalhar, posturas a serem adotadas nas variadas situações cotidianas, a correta utilização do instrumental técnico-operativo de cada profissional no equipamento, a adequação do trabalho às regulamentações da política de assistência social, dentre outras. O cotidiano de trabalho traz a tona nossas visões de mundo, a forma que enxergamos cada realidade com que nos deparamos diariamente e que orientam nosso fazer profissional e os documentos emitidos a partir deste, o que exige certos cuidados. A proteção social especial trabalha com indivíduos e famílias em situações de violação de direitos tais como violência física/psicológica/ sexual (abuso e/ou exploração sexual)/, negligência, abandono, trabalho infantil dentre outras demandas. Atuar na PSE requer habilidades no trabalho social com as famílias, com o atendimento pautado no respeito à diversidade de arranjos familiares, à heterogeneidade, potencialidades, valores, crenças e identidade das famílias atendidas. De acordo com a PNAS, a realidade brasileira revela que existem muitas famílias com as mais diversas situações socioeconômicas que induzem à violação de direitos dos seus membros, além dos mais diversos arranjos familiares, considerando, nesse processo, família como conjunto de pessoas que se acham unidas por consanguíneos, afetivos e, ou, de solidariedade, entendendo, nessa perspectiva, que há uma infinidade de arranjos familiares. O trabalho na política de assistência social seja na proteção social básica ou especial, requer o que Cardoso (2008) chama de observação sensível, tendo em vista a aparência muitas vezes não representar a essência da situação apresentada e é através dela que temos a possibilidade de desvelar o real. A autora caracteriza a observação sensível como vivência, busca por percepções, memórias, sensações e sentimentos frente à realidade apresentada. Tem a qualidade de nos alertar para o sensível no relacionamento com os usuários. Essa abordagem nos sensibiliza para a empatia e o cuidado na escuta e registro dos atendimentos, para o acolhimento e o respeito ao usuário e sua história de vida, significa “estar interessado no que o outro tem a dizer”. A autora nos fala que ao observarmos um determinado fenômeno social atribuímos significado ao mesmo, e, através dessa observação, expressaremos em nossos registros os sentidos, as condições de vida, acesso as políticas sociais, a presença real de violação de direito e de que forma as pessoas reagem aquela realidade, e como os indivíduos se organizam para o enfrentamento diário dos desafios colocados pelo contexto social vivenciado. Em concordância com a PNAS, sabemos que o trabalho na proteção social especial se dá realizando uma estreita interface com o sistema de garantia de direitos (1), onde é necessária muitas vezes uma gestão mais complexa e compartilhada com o Poder Judiciário, Ministério Público, Conselhos Tutelares, bem como outros órgãos e ações do poder executivo, com envio de relatórios dos mais diversos tipos para colaborar na elucidação dos casos. Essa interface nos remete a seguinte reflexão: quando emitimos um documento a algum dos órgãos do sistema de garantia de direitos relatando situações de violações de direito que são demandas da PSE, estamos a serviço de quem? A quem está direcionado o nosso trabalho? Qual teor dos relatórios emitidos, eles apresentam um profissional comprometido com os direitos dos usuários ou com a instituição a qual representa/responde? Quais os valores que imprimo ao meu trabalho diariamente? Será nosso papel julgar/punir usuários? Nesses termos é necessário refletir sobre a direção social adotada em nosso fazer profissional. Cardoso (2008) sinaliza que o nosso lugar (e aqui trago para o lugar dos profissionais que atuam na PSE) é de humanizar o atendimento ao usuário, é de torná-lo um espaço de direito legítimo, socialmente justo. Isso se dá quando imprimimos em nosso fazer profissional uma identidade institucional de que aquele espaço no qual estamos inseridos, é um espaço de direito social, fruto de conquistas democráticas coletivamente organizadas, e que nossa ação expressa nos serviços assistenciais esta intenção política. E é com esta intenção que devemos pautar todo processo de trabalho, reforçando o nosso compromisso com os direitos do usuário. Cardoso (2008) nos fala que o significado social de nossa intervenção consiste justamente numa estratégia para o resgate dos direitos emancipatórios e inclusivos destes usuários dentro do processo de desenvolvimento social. Devemos, portanto nos ater ao cuidado na escrita dos relatórios enviados aos órgãos, utilizando um referencial técnico pautado nas regulamentações da política de assistência social, no referencial bibliográfico comum à temática e nas orientações ético-políticas profissionais e adequado aos objetivos propostos. O uso de discursos de senso comum, reproduzindo estigmas e preconceitos retratam um profissional despreparado para lidar com a complexidade da realidade social que permeia a vida dos usuários da política de assistência social, o que pode prejudicar potencialmente os usuários e ainda culpabilizar as famílias e/ou indivíduos. Cardoso (2008) enfoca ainda que a “adoção de conceitos marcadamente assistencialistas, pragmáticos e excludentes, [na elaboração dos relatórios] pode induzir a ações semelhantes, nos distanciando de compromissos essenciais que dão sentido à existência profissional”, dentro do equipamento da política de assistência social no qual estamos inseridos como é o nosso caso e isso independe da categoria profissional e se o trabalho é desenvolvido na PSB ou PSE. A autora nos demonstra ainda que devemos nos questionar se é objeto do serviço social ou de outra profissão que atue na política de assistência social, ser investigador da vida alheia, que emite julgamentos sobre comportamentos, modos de vidas das famílias ou se somos investigadores da realidade social em que estes estão inseridos, das afetações político-sociais que podem interferir na qualidade de vida das pessoas, no acesso a seus direitos fundamentais. No trabalho com famílias, por exemplo, quando da elaboração de relatórios, por vezes são utilizados termos como “ambiente nocivo”, “lar instável”, “desestrutura familiar”, “lar desestruturado” e tantos outros termos estigmatizantes , desse modo, devemos refletir sobre qual modelo de referência familiar estamos adotando como correto para considerar que este ou aquele modelo seja inadequado (2). Segundo Cardoso (2008) a linguagem adotada na elaboração dos relatórios revela os estigmas do profissional,
Entre o pessimismo da razão e o otimismo da vontade: breves considerações sobre cultura política e trabalho na assistência social

Por Thaís Gomes* Chegou ao fim mais um período eleitoral e assim vão sendo desenhadas as plataformas políticas para os próximos quatro anos em nível municipal… É um período que traz muitas preocupações e incertezas para os trabalhadores da assistência social. Cortes de gastos, ameaça de demissão dos trabalhadores contratados, redução das equipes e dos benefícios, interrupções nos SCFV, são só alguns dos fatores que prejudicam potencialmente a oferta dos serviços socioassistenciais. Esse quadro demonstra como a cultura política local influencia a dinâmica da política de assistência social, principalmente em períodos eleitorais, onde é possível notar o quanto ainda é utilizada como meio de troca de favores entre políticos e eleitores, com predomínio de relações verticais com forte cunho clientelista, ainda que a atual configuração da política de assistência social proponha exatamente a ruptura com o ranço histórico do assistencialismo. Não é incomum ver vereadores “bondosamente”, isentos de interesses, acompanharem os usuários dos serviços nos CRAS por exemplo, para acesso a benefícios eventuais em ano de eleição municipal por exemplo. E se os traços da cultura política influenciam a dinâmica da política de assistência social, cumpre observar que afeta também o trabalho dos técnicos que atuam na ponta dos serviços. A incidência das práticas de mandonismo e coronelismo nos municípios influenciam os processos de trabalho e a oferta dos serviços na política de assistência social de um modo perverso ao permitirem também, para além do cenário citado anteriormente, a inserção de pessoas sem qualificação profissional e técnica para ocupar cargos de gestão/ coordenação nas secretarias de assistência social através dos cargos comissionados, pois ao não disporem dos requisitos para ocupar tais cargos, acabam reproduzindo dentro da lógica de trocas de favores e cabide de emprego, práticas assistencialistas que perpetuam a visão da política de assistência social como favor e não como direito, culminando num círculo vicioso que prejudica a oferta de serviços em consonância com as prerrogativas do SUAS, além de causar constrangimentos entre as equipes técnicas, usuários e gestores. Além disso, a grande incidência de contratações profissionais por contrato de trabalho por tempo determinado, RPA’s, comissionados, terceirizados e voluntários em detrimento da contratação via concurso público também configura uma questão delicada no debate da cultura política local, pois nos remete a pensar até que ponto as normativas existentes no arcabouço da política de assistência social, como a NOB-RH (Norma Operacional Básica de Recursos Humanos) têm força de lei, tendo em vista ser a contratação por concurso público o modo em que se atesta o conhecimento técnico do profissional para exercer determinada função, confere estabilidade profissional, além de ser parte fundamental no processo de construção de uma política pública de Estado e estar preconizado na configuração da política de assistência social. De acordo com Brisola e Silva (2014) a precarização das condições de contratação no âmbito do SUAS contribui também para a restrição dos direitos profissionais/ trabalhistas e para a descaracterização da assistência enquanto política pública estatal podendo ocasionar ainda mais retrocessos na efetivação dos direitos socioassistenciais. Outro ponto a ser destacado na trama de relações desenvolvidas por intermédio da cultura política local é a participação social dos profissionais nas instâncias de representação dos trabalhadores, sindicatos, conselhos de direito e de políticas e movimentos sociais. A precarização das condições de trabalho também é fator determinante no processo de despolitização das categorias profissionais e também da própria política de assistência social, que prevê a participação e o controle social por intermédio dos conselhos e conferências. Muitas vezes imersos na rotina de trabalho, em meio a tantas questões que se colocam, os profissionais não dispõe de tempo para discutir o trabalho desenvolvido, refletir sobre suas práticas, sobre as condições de trabalho, bem como participar ativamente das instâncias de controle social como o conselho municipal de assistência social por falta de tempo e estímulo e até mesmo por represálias (demissões, assédio moral, ameaças de violência, perseguições, etc) que possam sofrer advindas do órgão gestor da política ou do poder executivo, ou de ambos. Além da parca oferta de capacitações para as equipes técnicas, o que propiciaria um espaço privilegiado para trocas de experiências e debate sobre o cotidiano de trabalho. Importante sinalizar que enquanto profissionais precisamos estar atentos à dinâmica das relações sociais forjadas em nosso dia a dia, buscando entender a dinâmica social e econômica e seus rebatimentos em nosso espaço profissional, para que possamos adotar posturas que busquem romper com práticas burocráticas e conservadoras que ajudam a perpetuar práticas clientelistas e assistencialistas, traços da cultura política local, dentro da política de assistência social. E isto somente pode se concretizar através das discussões fomentadas pelas práticas profissionais e das estratégias de enfrentamento traçadas por quem faz o SUAS acontecer diariamente. O cenário que se mostra atualmente é de grandes retrocessos na política de assistência social em todos os níveis, nacional, estadual e municipal. No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, recentemente a Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos foi incorporada à Secretaria Estadual de Saúde, o que representa um enorme retrocesso ao unir as políticas de assistência social e saúde, destaque também para os importantes documentos de referência sobre o trabalho na política de assistência social elaborados pela SEASDH. A impressão que tenho é que estamos vivenciando um estado de apatia social e descredibilidade política em meio a conjuntura que se apresenta através dos noticiários (sérios e imparciais), redes sociais, diante de tantos bombardeios de estratégias dos governantes de todas as instâncias para dirimir direitos sociais conquistados. Mas não devemos/ podemos perder as esperanças pois em meio as crises é que surgem as possibilidades de mudança. Que em 2017 possamos coletivamente traçar estratégias para enfrentar o desmonte dos direitos sociais, que tenhamos coragem e ousadia para lutarmos pela política de assistência social e pela efetivação dos direitos, por melhores condições de trabalho no SUAS, por maior adesão e participação dos trabalhadores nos espaços de decisão, frentes de trabalho, grupos de discussão e reflexão do trabalho para juntos buscarmos uma alteração neste cenário de retrocessos posto. “(…) O
O primeiro-damismo e a desprofissionalização como barreiras na consolidação do SUAS

Por Tatiana Borges; Aline Morais; Lívia de Paula; Rozana Fonseca e Thaís Gomes Apesar de estar reconhecida enquanto política pública na Constituição Federal de 1988, a Assistência Social tardiamente passou a se constituir como direito social e dever do Estado, já que o seu histórico é fortemente marcado pela caridade, filantropia e voluntariado, ou melhor, é o histórico do ‘não direito’, do favor. É possível afirmar que foi com a implantação do SUAS, através da PNAS de 2004, que ocorreu um salto na profissionalização da assistência social, ou seja, contrapondo as práticas emergenciais de compaixão, de improviso e personalismos, é o arcabouço normativo dos últimos 10 anos da política de assistência social que reforça ou exige a presença de equipes de referência interdisciplinares constituídas por servidores públicos para a intervenção no conjunto de expressões das desigualdades sociais, através de serviços e benefícios socioassistenciais. Dito de outra forma, o reconhecimento, através de ordenamentos institucionais e direcionamentos políticos, de que o atendimento com dignidade prestado à população exige condições de trabalho e profissionais qualificados nas dimensões teórico-metodológica, ético-política e técnico-operativa é recente. Assim como é novo o tratamento da Assistência Social como responsabilidade estatal, expressada através de seguranças indispensáveis ao desenvolvimento pleno dos cidadãos com a garantia de direitos e com o envolvimento efetivo de todas as esferas de governo. Muito embora este entendimento seja fruto de estudos muito anteriores ao SUAS, de embates e lutas históricas para o reconhecimento da política de Assistência Social como direito e de militância política de diversos segmentos da sociedade, bem como de profissionais, com destaque aos assistentes sociais, o movimento para a implantação deste sistema é ainda incipiente, pois temos mais um modelo do que um sistema propriamente instalado, o que não invalida, de forma alguma, os avanços reais conquistados. Avanços oriundos especialmente dos movimentos organizados de trabalhadoras/es e de usuários, seja na militância diária em seus equipamentos de trabalho ou em fóruns, grupos e conselhos destinados à discussões, deliberações e construções da política. O avanço do SUAS – mesmo que não esteja nivelado, pois a cobertura para os riscos sociais não é universalizada e há um descompasso entre as formas e o tempo histórico de incorporação desta política pela união, estados e municípios – é inegável, principalmente, pelo potencial, já demonstrado pelas pesquisas e pelos indicadores existentes, de impactar a existência de grupos de pessoas, atuando na proteção a vida, na prevenção da incidência de riscos sociais, na identificação e superação de desproteções sociais e na redução de danos. Ainda assim, o desafio cotidiano que nós, das diversas categorias profissionais – que hoje, graças ao conjunto normativo do SUAS, compõem a política de assistência social – enfrentamos é superar a tradição de práticas assistencialistas pautadas sempre pelo controle e adestramento das famílias e pela criminalização da pobreza como forma de manter “a ordem e o progresso” do país, bem como o poder sobre os pobres, tratando os como desvalidos, carentes e não como cidadãos ativos de direitos. Considerando que o primeiro-damismo é uma realidade em muitos municípios, fica mais evidente a necessidade de pautarmos criticamente este cenário, uma vez que agora há uma representação emblemática e carregada de retrocessos. O quanto o primeiro-damismo tem emperrado a consolidação no SUAS? Valeria um estudo, porque sabemos que ainda há uma distância entre a legislação e o modo como a Assistência Social é vista pela população, pelos seus dirigentes e gestores municipais. O que sabemos é que, em muitos municípios a realidade da política de assistência social é permeada por ações de cunho clientelista que se convertem em moeda de troca nos acordos político-partidários entre prefeitos e vereadores para garantir votos da população. A incidência destas práticas na política de assistência social culmina numa desarticulação e fragmentação da mesma, numa sobreposição de propostas, sem considerar o que já existe no SUAS, reduzindo as ações à ajudas e concessões pontuais da primeira-dama. Nós, profissionais que compomos o SUAS e que defendemos este modelo de política pública, trabalhamos em uma direção que tem o Estado como principal responsável pelo bem-estar social e assim tendo como competência a promoção da proteção social que, no âmbito do SUAS, se materializa por meio dos serviços e benefícios socioassistenciais. Nesta direção o Estado atua como agente executivo (PAIF e PAEFI, programas e benefícios), agente regulador (dos serviços socioassistenciais prestados por entidades e organizações sociais) e agente de defesa de direitos e da participação social e esta direção, que preza a assistência como um direito e não como uma benesse, nos faz posicionarmos contrárias/os às propostas que venham reforçar o primeiro-damismo, estatuto que representa tudo aquilo que procuramos romper, ou seja, com o clientelismo, com o cerceamento de famílias e com o uso das pessoas que necessitam da assistência social para a promoção da imagem do político. O primeiro-damismo, a nosso ver, é a caricatura da negação do direito, uma vez que simboliza, de forma bastante clara, o lugar que governos baseados em assistencialismo reservam à população usuária do SUAS: o lugar de quem deve agradecer ao político pela sua bondade, por sua benevolência. Por saber que nós, trabalhadoras/es do SUAS, nos constituímos como a “tecnologia básica” deste sistema, uma vez que “a mediação principal é o próprio profissional” (BRASIL, 2008), não podemos nos calar, pois o trabalho social que realizamos exige conhecimento, formação técnica e perfil e não é possível que para um cargo de condução de uma política pública o critério seja o casamento e não o currículo profissional ou concurso público. A qualificação do trabalho social com famílias é um grande marco na implantação do SUAS e em uma de suas dimensões há um conjunto de atribuições técnicas/os, que compõem as equipes de referência dos serviço socioassistenciais. Entre estas atribuições está o acompanhamento às famílias que se encontram em situação de vulnerabilidade e/ou risco social decorrente, dentre outros fatores, da precariedade de renda. Assim, as famílias beneficiárias de programas de transferência de renda são prioritárias para o acompanhamento social que se configura como a oferta de um serviço e não uma exigência ou
Um dedo de prosa: reflexões iniciais sobre o atual contexto histórico e os desafios do trabalho no SUAS

Queridos leitores, é com muita alegria e honra que completo, por ora, o time das colaboradoras do Blog Psicologia no SUAS. Fechando as apresentações, temos o primeiro Post da Thaís Gomes, assistente social. Seja muito bem-vinda, Thaís! <3 Por Thaís Gomes* Logo após tomar posse no concurso, ao saber que iria trabalhar na política pública de assistência social, especificamente no CRAS, senti aquele medo, comum a quem vai iniciar seu trabalho em um lugar novo (apesar de ser a assistência um lugar historicamente familiar aos assistentes sociais) e pensei: preciso ler, preciso me aprofundar na temática, buscar informações que subsidiem e qualifiquem o meu trabalho. Assim, nessa busca, encontrei o Blog Psicologia no SUAS, onde me senti acolhida em minhas inquietações profissionais e que foi um instrumento maravilhoso de aprendizado, abordando as questões pertinentes ao trabalho no SUAS de forma didática, crítica e propositiva, oportunizando os profissionais re-pensarem o fazer profissional através de muitas informações importantes e com uma troca de experiências muito interessante. Hoje, escrevendo este primeiro texto como colaboradora do Blog, representando também os assistentes sociais que atuam no SUAS, me sinto muito feliz, honrada e dotada de grande responsabilidade pela oportunidade de poder partilhar experiências, observações e reflexões sobre a prática profissional dos Assistentes Sociais na assistência social. Ao relacionar a política de assistência social e o Serviço Social temos um leque de assuntos relevantes que podemos abordar. Desse modo, pretendo inicialmente apresentar reflexões sobre a prática profissional do assistente social no SUAS, especialmente na PSB, questões sobre cultura política e os entraves postos a efetivação/funcionamento do SUAS no âmbito municipal, gestão da política e participação e controle social, com espaço aberto para sugestões de temas advindos dos colegas profissionais de Serviço Social e trabalhadores do SUAS de um modo geral. Dentre as tantas possibilidades de abordagem, penso ser de suma importância contextualizar o momento que vivemos em nosso país, após um impeachment presidencial, fruto de um golpe político, onde a partir daí vemos surgir uma forte onda de retrocessos, aos quais não compactuamos (e não devemos temer), expressa numa série de ataques aos direitos sociais, à seguridade social, com rebatimentos para a política de assistência social, na qual estamos inseridos enquanto trabalhadores do SUAS e como tal, considero que este seja um momento em que, mais do que nunca, temos que estar atentos e unidos na defesa da política de assistência social como política pública assegurada pela Constituição Federal, com legislação própria e estruturada a partir de um Sistema Único de Assistência Social. Unidos também pela garantia de nossos direitos trabalhistas, por valorização profissional e salarial, por condições objetivas de trabalho nos equipamentos tais como espaço físico adequado, materiais e recursos para andamento dos serviços, investimento em capacitação e educação permanentes dos profissionais, dentro outros que refletem diretamente na qualidade dos serviços prestados à população usuária. Além, claro, sem esquecer da defesa e garantia dos direitos de nossos usuários, tal como preconizado na LOAS em seu Art. 1º onde a “assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas.” Há que se reforçar então, nesse contexto, o compromisso ético-político dos assistentes sociais, na defesa do SUAS, com o objetivo de contribuir para que este seja implementado em conformidade com o preconizado na legislação, em sua totalidade e não em ações isoladas, remetendo ao assistencialismo e ao favor, desvinculadas da noção de direito, que caminham para a desconstrução da política pública de assistência social e dos direitos sociais conquistados. São tempos de luta, tempos em que é necessário reconhecer que o trabalho é árduo e repleto de desafios, mas temos que ter a convicção de que é possível construir coletivamente alternativas, que muito avançamos em relação ao passado, mas que muito ainda precisa ser feito para que avancemos mais e mais e para isto todas as categorias atuantes no SUAS precisam estar engajadas na construção de propostas e organizadas na defesa do mesmo. Cientes então, dos desafios postos no atual contexto, da importância da discussão sobre ações na defesa do SUAS e dos direitos sociais e do necessário enfrentamento aos diversos ataques sobre os direitos dos trabalhadores em geral, convido a todos interessados no tema a refletir sobre as possibilidades de mudança, comprometidos com o aprofundamento e defesa da nossa democracia (tão recente e fragilizada), com a luta pela conquista de novos direitos e com a ampliação da cidadania. Referências: BRASIL. Lei Orgânica da Assistência Social, Lei n°. 8.742, de 7 de Dezembro de 1993. Dispõe sobre a organização da assistência social e dá outras providências. *Thaís Siqueira Gomes: Graduação em Serviço Social pela Universidade Federal Fluminense – UFF (2010). graduação em Gestão de Políticas Públicas de Assistência Social e Saúde pela Faculdade Governador Ozanam Coelho – FAGOC (2016). Assistente Social do CRAS no município de Conceição de Macabu – RJ desde junho de 2015. Contato: thais_uff@yahoo.com.br .