Da adesão à participação: repensando nossa relação com as(os) usuárias(os) do SUAS

Por Lívia Soares de Paula* Desde o lançamento da Campanha de Combate ao Preconceito contra a Usuária e o Usuário da Assistência Social, lançada pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) e pelo Fórum Nacional de Usuárias e Usuários da Assistência Social (FNUSUAS) em dezembro de 2017, venho refletindo continuamente sobre a relação estabelecida entre nós, trabalhadoras (es), e as (os) usuárias (os) da política de Assistência Social. Veja também o texto que já publiquei aqui: Preconceito de quem? Algumas inquietações sobre as relações entre trabalhadores e usuários no SUAS. Nesta relação, um dos desafios diz respeito a participação (ou não) das (os) usuárias (os) nos atendimentos e atividades propostas nos nossos equipamentos. Este assunto é recorrente nos espaços de discussão sobre nossa atuação no SUAS e a escrita deste texto sobre ele foi sugerida por uma colega assistente social que, ocupando um destes espaços, se viu provocada a refletir sobre o mesmo. No nosso cotidiano de trabalho, em geral não utilizamos o termo participação, mas sim adesão das (os) usuárias (os) nas atividades: “essa família não adere”; “já fizemos de tudo, mas não conseguimos a adesão das famílias”. O uso do termo adesão em detrimento do termo participação já aponta, a meu ver, alguns pontos importantes para iniciarmos nossa conversa sobre a temática. O que vêm à sua cabeça quando ouve a palavra aderir? E quando ouve a palavra participar? Quais as diferenças entre estas duas palavras? Fazendo uma pesquisa simples no dicionário, já nos é possível tecer alguns apontamentos sobre as possíveis definições para as duas palavras. Para a palavra adesão, o dicionário traz: 1. ação ou resultado de aderir, de ligar-se ou estar fisicamente ligado a algo, aderência; 2. postura favorável a uma ideia, movimento, ato, etc; 3. filiação a partido, associação, etc. Para participação, encontramos: 1. ação ou resultado de participar, de fazer parte; 2. associar-se pelo pensamento, pelo sentimento, compartilhar. Este simples retorno às definições me provoca a pensar sobre as duas palavras e suas diferenças. O termo aderir me sugere que estamos olhando para a (o) nossa (o) usuária (o) como um sujeito passivo que irá se “ligar” ao que projetamos para ele. Já o termo participar me coloca diante da imagem de uma (o) usuária (o) ativa (o), que faz parte, que associa-se pelo sentido que o projeto tem para ela (e), que “com-partilha”. A partir disso, faço a nós um convite. Precisamos refletir sobre como olhamos para as famílias e indivíduos que acompanhamos: como sujeitos que aderem ou que participam? Silva (2014) realizou uma pesquisa na cidade de Porto Alegre (RS), com o intuito de conhecer os usuários da política de Assistência Social daquela cidade. Os resultados de sua pesquisa mostram-se muito relevantes para contribuir com o nosso diálogo sobre os questionamentos que coloquei anteriormente. A autora faz um apanhado histórico sobre nosso país e sobre o surgimento e transformação da Assistência Social no Brasil. Menciona nossa cultura política que ainda transveste o direito como benesse e concessão. Tal cultura reforça a subalternidade e afasta a sociedade das relações democráticas. (SILVA, 2014, p. 125) Sob meu ponto de vista, este aspecto é um dos pontos nodais no nosso trabalho junto às (aos) nossas (os) usuárias (os). Não raro, olhamos para as famílias e indivíduos que atendemos como sujeitos que devem se submeter ao que planejamos para eles. Reforçamos a velha lógica assistencialista, na qual o sujeito atendido não é escutado, não é convidado a fazer parte como protagonista de sua vida que é, mas sim colocado no lugar de mero receptor de benesses. Esta constatação me acompanha tantas e tantas vezes, quer seja no meu cotidiano de trabalho quer seja nos espaços de discussão que frequento, que me pergunto: será que é só assim que conseguimos trabalhar? Como essa forma de atuação relaciona-se com nossa própria história de vida e com nossos preconceitos? E porque estamos escolhendo atuar como trabalhadoras (es) de uma política que prima por defender intransigentemente a cidadania como um direito? É urgente que respondamos a estas perguntas. Ao refletir sobre isso, salta aos meus olhos o quão contraditórios temos sido se na teoria defendemos a política de Assistência Social como um direito, mas na prática agimos ancorados na lógica da concessão que nos transporta para um lugar de poder sobre vidas que não são as nossas. Em que nos interessa ter poder sobre a vida de outra pessoa? E de que poder estamos falando? Em sua pesquisa, Silva (2014) se deparou com alguns usuários do SUAS que afirmaram não saber nada sobre cidadania ou sobre sujeito de direitos. Isso reforça ainda mais minhas indagações sobre a contradição que expus acima. Defendemos uma política de direito, mas deixamos passivamente que a (o) usuária (o) nem saiba o que isso significa. E assim, as desigualdades vão se solidificando, com o nosso aval. Eu, trabalhadora e detentora da informação, defino e a (o) usuária (o) executa, “adere”. É urgente que pensemos a esse respeito. Precisamos nos incomodar com isso. Sair do lugar cômodo de quem detém o poder sobre o outro, de quem diz tranquilamente que as famílias não “aderem”. Essa é tarefa que nos está posta: É tarefa primordial da Política de Assistência Social a superação dessa dimensão com caráter clientelista para se afirmar como política que possibilite a construção de direitos, contando com o protagonismo dos sujeitos por ela atendidos. Os elementos conservadores e autoritários, constituintes da formação social brasileira, revelam o quanto a hegemonia das classes dominantes exerce a reprodução das formas de dominação das classes subalternas no país. (SILVA, 2014, p. 145) Eis o nosso desafio. Ao invés de dizermos que nossas (os) usuárias (os) não aderem, é fundamental que reflitamos sobre os embasamentos de nossa atuação. Temos observado e avaliado as políticas setoriais do nosso município, analisando o quão alinhadas elas estão entre si e com as necessidades e demandas dos cidadãos? Temos provocado espaços de diálogo com nossas (os) usuárias (os), nos quais elas (es) possam se sentir à vontade para se expressarem, por meio do estabelecimento

Sobre modos e meios de resistência ao desmonte da assistência social

Por Rozana Fonseca Levei tempo tentando achar o tom mais adequado para este texto, porque tenho medo de produzir discurso enviesado na responsabilização de quem é vítima. Mas já escrevi dois textos marcando minha indignação quanto ao governo atual e por isso a escolha por este caminho, além do mais, não dá para desfazer o governo (se fosse mulher no posto, até que dariam um jeito…). Diante do retrocesso (ranço dessa palavra, mas não conheço outra melhor e mais capaz de condensar o que estamos vivendo), da retirada à fragilidade dos direitos (todos eles: humanos, sociais, civis, políticos), muitos me perguntam: Como continuar acreditando no SUAS? Como manter a motivação? O que fazer diante do desmonte, falta de profissionais, redução ou fechamento de unidades de proteção social? É difícil propor respostas a essas inquietações sem particularizá-las porque temos uma diversidade de situações e contextos – considerando os aspectos socioeconômicos e políticos de cada região do Brasil, mas eu desconfio que se faz urgente repensar nossa ausência nas instâncias de controle social, bem como questionar a qualidade quando há participação. Os tempos são sempre de resistência e de luta para vários povos, minorias, e movimentos sociais – mas aos tempos atuais, acrescenta-se tensão, terrorismo, autoritarismo, Fake News e amadorismo. Lutas por direitos, por transformações sociais, são campos de forças e na maioria das vezes o governo impera.   Vejo como saída mais disponibilidade para participar dos campos de disputas e defesas de interesses coletivos. Porque acredito que o cenário atual escancara a nossa falta de mobilização e de ocupação dos espaços de controle e participação social. Mas também expõe a fragilidade dos resultados dessas instâncias. Fragilidade porque a manutenção e o porquê desses espaços não estão solidificados e não têm o mesmo prestígio nas diferentes regiões. Nas grandes cidades temos organizações de grande atuação e com indiscutível relevância enquanto que nas médias e pequenas cidades há uma lacuna enorme de organizações coletivas. Cada centro urbano com suas dificuldades. Nas metrópoles, mesmo com várias organizações coletivas, é sabido que a participação popular não é muito expressiva ou os espaços mais disputados, são concorridos pelas mesmas pessoas, estas que revezam nos cargos de representatividade diante da falta de pessoas interessadas em disponibilizar tempo de sua jornada para lutar por causas coletivas. Nas médias e pequenas cidades os espaços são dificultados pela personalização das relações, pela rotatividade dos profissionais e pela precarização dos vínculos trabalhistas, o que força o profissional a trabalhar em dois ou mais municípios para receber um vencimento razoável. Vou problematizar as conferências municipais dos conselhos de direitos porque já presenciei muita participação protocolar nesses espaços e porque também defendo que não há meios de aperfeiçoar uma prática senão passarmos pela criticidade e pela análise da efetividade do que está sendo feito. Por isso pontuo algumas situações a serem superadas: Trabalhadores presentes em conferência para cumprir dia de trabalho e para desempenhar atividades operacionais e de logística. Trabalhadores como facilitadores dos grupos de trabalho porque foram designados para tal função, contudo não fazem a menor ideia do que são as temáticas a serem discutidas. Trabalhadores que não sabem se estão como governo ou sociedade civil (o resultado desse equívoco é desastroso e sintomático porque evidencia que os trabalhadores estão alheios ao seu lugar de disputa e defesa). Cabe a pergunta: testemunha-se tal situação por desinteresse dos trabalhadores ou pelas condições de gestão do trabalho no SUAS que não viabilizam estudos, capacitações? Se olharmos mais de perto, vamos encontrar as duas variáveis. E os usuários? salvo um número pouco expressivo, estamos longe de afirmar uma participação efetiva. Já presenciei usuário conselheiro votando em pauta que apenas favorecia interesses do governo, minha atenção ao seu voto foi maior ao vê-lo dias antes em reunião com gestor da assistência social – este que o convocou para um encontro. Conseguinte, o descrédito e a depreciação desses espaços deliberativos são inevitáveis. A desmotivação para se dedicar a esse campo também se torna certa, daí perguntamos, quais motivos temos para acreditar em um processo tão passível de dissimulação?  Serão esses os motivos da ausência de tanta gente? Ou serão essas ausências as motivadoras desses resultados protocolares e questionáveis? Então, como resistir usando ferramentas que nós desconhecemos ou que pouco lhes conferimos créditos? É sabido que conferências, conselhos de direito já funcionaram como marcos decisivos no avanço dos direitos sociais e já se mostraram como possibilidade efetiva de participação da sociedade civil nas decisões do governo. E é válido pontuar que a natureza de intensas disputas e tensões de forças não são ruins em si mesmas, pois são inerentes a construções heterogêneas com vários interesses em pauta. O que não dá é só um lado da força se apossar do terreno, munidos pelo privilégio do acesso e conhecimento do sistema, e se fazer presente de maneira tão desonesta.  Uso o exemplo do conselho ou conferência, mas é preciso se abrir para os espaços de defesa da classe trabalhadora e dos usuários como Fóruns municipais ou regionais dos trabalhadores, Fóruns municipais dos usuários, pois são imprescindíveis como resistência e construção coletiva para evitar o que falei no início do texto: a perseguição política e personificação das lutas. Discorridas as críticas ao modus operandi dessas instâncias coletivas e à nossa exígua presença nas mesmas, por onde podemos começar? Participar como ouvinte das reuniões ordinárias do CMAS e outros conselhos de direitos, bem como de outras políticas púbicas do município; Ficar atentos no prazo da eleição de composição dos conselhos; Criar fórum dos trabalhadores ou reativá-lo; Mobilizar, incentivar e colaborar com os usuários para que os mesmos possam ser capazes de decidir e organizar seus espaços de lutas e defesas coletivas. Incorporar nas atividades coletivas dos serviços do SUAS, ao longo do ano, as temáticas e práticas de participação e controle social; Participar de sessões ordinárias na Câmera de vereadores; Acionar o Ministério Público diante de assédio moral no trabalho; Acionar o Ministério Público frente a ameaça aos direitos sociais (é nossa função a defesa social e institucional, mas sozinhos

Preconceito de quem? Algumas inquietações sobre as relações entre trabalhadores e usuários no SUAS

Por Lívia Soares de Paula* Em dezembro do ano passado, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) lançou em parceria com o Fórum Nacional de Usuárias e Usuários da Assistência Social (FNUSUAS), durante a XI Conferência Nacional de Assistência Social, a “Campanha de Combate ao Preconceito contra a Usuária e o Usuário da Assistência Social”. Na ocasião, foi apresentado o primeiro vídeo da campanha. Segundo informações do site do CFP, a iniciativa tem por objetivo: provocar o debate sobre questões que perpassam diariamente a vida das pessoas que acessam os benefícios, programas e serviços da Assistência Social. A responsabilização individual pela situação de pobreza, a acusação de vagabundagem e visão de que a situação de vulnerabilidade social é resultado de escolhas são algumas delas.[2] Dando continuidade às ações da campanha, foi realizado um Diálogo Digital intitulado “Vergonha não é ter direitos, vergonha é ter preconceito”.[3] Assistindo a este Diálogo, me vi desafiada a dividir com vocês neste espaço algumas reflexões que me ocorrerem a partir das falas dos convidados. A primeira questão que me ocorreu, a meu ver, revela uma possível contradição. Ao receber a divulgação do Diálogo, de pronto pensei: “preciso ver este evento, ouvimos falar e falamos tão pouco deste assunto”. No entanto, enquanto assistia, me vi pensando no quanto falamos sobre os usuários: “fulano não adere”; “não tem jeito com essa família”; “será que está me contando a verdade?”; “a gente tenta de tudo, mas eles parecem não querer ajuda” … Essas, dentre diversas outras, são frases muito comuns em nosso cotidiano de trabalho. Em minha percepção, estaria aqui revelada a contradição: falamos pouco sobre o assunto ao mesmo tempo em que falamos muito sobre os usuários. Muito sobre aquilo que eles não conseguem e sobre as angústias que o contato com eles nos traz. E foi esta constatação que me desafiou a abordar o tema aqui, para que possamos juntos lançarmo-nos algumas indagações sobre nossa prática junto ao público da Política de Assistência Social. Um dos pontos importantes e que podem nos apontar indicativos da direção na qual temos caminhado em nossa atuação no que tange a este aspecto, diz respeito à participação dos usuários nas esferas de Controle Social. Os usuários de seu município participam efetivamente dos conselhos de direitos? Sabem o que são estes conselhos? Estão presentes nas conferências? De que forma esta questão é tratada pela gestão e pelos técnicos do equipamento em que você está inserido? Junto a isso, precisamos nos perguntar também sobre como temos conduzido o acompanhamento das famílias que atendemos. Qual é o lugar que as famílias ocupam neste acompanhamento? Como é a construção das estratégias de trabalho em cada situação? Quem participa? Quando temos que redigir algum documento sobre o trabalho realizado, as famílias têm sido consultadas? As respostas a cada uma destas perguntas nos auxiliarão na identificação do cenário no qual estamos trabalhando. Talvez sejam suscitadas novas interrogações. A partir daí tornar-se-á possível falarmos sobre o trabalho junto aos usuários, de forma séria, comprometida e responsável. Na minha percepção, infelizmente, ainda estamos longe disto. Longe disto porque nosso discurso ainda está concentrado em um “sobre o usuário” que, na maioria das vezes, não inclui um “com o usuário”. E não podemos negar que este discurso “sobre o usuário” está, em muitas circunstâncias, carregado de preconceito. Isto posto, constato que, diante da campanha que norteia este texto, é impreterível que nos indaguemos: Preconceito de quem? E quando o preconceito parte de nós mesmos, trabalhadores do SUAS? Esta foi uma das questões levantadas no Diálogo realizado pelo CFP. E é de fato uma questão delicada: será possível trabalhar o preconceito da sociedade em relação aos usuários sem antes trabalhar os nossos próprios preconceitos? Será que nosso discurso sobre o usuário nos aproxima ou nos distancia dele? Para refletir um pouco mais sobre isto, proponho que façamos um exercício. Suponhamos que, depois de compartilharmos nossa história com uma pessoa, presenciemos esta mesma pessoa conjecturando e lançando hipóteses sobre o porquê agimos de determinado modo e não de outro, o porquê temos determinadas dificuldades. Sem nos consultar, a pessoa está dedicada a construir uma teoria sobre nós. Suponhamos que, após este momento, a pessoa traga ao nosso encontro (ou seria ao nosso confronto?), de forma pronta, as “soluções” que ela está certa que resolverão as dificuldades que compartilhamos. Como nos sentiremos? Não raro, é esta a atitude que temos frente aos nossos usuários. Fazemos conferências para deliberar sobre ações direcionadas a eles, sem que eles estejam efetivamente presentes. Individualizamos e psicologizamos suas dificuldades, esquecendo as especificidades de cada contexto em que estão inseridos. Não ouvimos suas vozes. Desmerecemos o que eles nos apresentam. Não valorizamos o seu saber. Neste momento, estamos servindo a quem? Sem ações emancipatórias legítimas, engrossamos o caldo da benevolência, da caridade, da assistência social como “favor”. Já vivenciei e me incomodei muito com situações nas quais o usuário nos agradece por aquilo que fizemos “por ele”. Cada vez que um usuário me agradece por aquilo que fiz “por ele”, me questiono: será que não consegui, de novo, fazer “com ele”? Volto ao Diálogo Digital instigador deste texto: estamos conseguindo trabalhar junto aos nossos usuários a noção de que não é vergonha ter direitos? Muito já foi dito sobre o quanto a Política de Assistência Social nos convoca a repensar nosso papel enquanto profissionais. E os desafios frente a este assunto também nos convocam a prosseguir repensando. Nosso suposto saber precisa ser deixado de lado. Ele nos coloca distantes dos nossos usuários. O saber que pode ser fermento para a emancipação precisa ser construído no entre, na relação que estabelecemos com as famílias que atendemos. Nesta relação não pode caber verticalidade. Sobre a escuta das pessoas atendidas na Política de Assistência Social, Silva (2014) afirma: […] Uma escuta que dê voz, que revele, realmente, a expressão da palavra aos sujeitos de sua história […] É importante que seja um espaço onde o protagonismo assuma seu efetivo exercício político de cidadania na complexa trama das relações sociais. (p.153) Sendo