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Auxílio Brasil e o fim do Bolsa Família: o triunfo da narrativa meritocrática


Rozana Maria da Fonseca

Está em tramitação na Câmara dos Deputados a Medida Provisória 1061/21[i] que cria o programa Auxílio Brasil para ocupar o lugar do maior programa de transferência de renda condicionada da américa latina e do mundo[ii], o Programa Bolsa Família. Outro programa que sofre modificações além da nomenclatura é o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que terá em seu lugar o Programa Alimenta Brasil[iii].

Neste texto, eu proponho o destaque a um dos problemas mais severos dos programas que é o seu pano de fundo, ou melhor, a sua base ideológica – a sustentação para erguê-los está pautada na narrativa meritocrática e na responsabilização individual pelo acesso ao mundo do trabalho e superação da pobreza – o enredo do governo sempre inclinou às medidas meritocráticas e quando elas chegam, diferente do que se esperaria de um desgoverno, ele não rompe abruptamente com um programa, ele o reveste de falsas promessas e usa muito bem a narrativa da meritocracia a seu favor. Este não é mesmo um desgoverno, pelo contrário, ele tem projetos – alinhados com os interesses da burguesia e aos poucos vai ganhando mais terreno e impondo afrouxamento aos mais ricos e apertando e onerando a vidas dos mais pobres.

Muitos hoje já não elegeriam Bolsonaro, mas estes mesmos votariam em propostas como estas da Medida Provisória. Sabe por quê? Porque ela é impregnada do discurso neoliberal do acorde cedo e vá à luta!  Então, vejam só, como haverá opositores em volume necessário se o nosso país está tomado pela narrativa do empreendedorismo e do individualismo?  Frente a estes programas, o governo e seus aliados, já contavam com o cenário de aceitação popular dessa proposta.

Eles sabem do poder regozijante ao impor uma reviravolta nos programas de transferência de renda condicionado que foca à tratativa individual um problema coletivo e estrutural, porque enfatiza o argumento classista e eu diria, violento, que prolifera falácias sobre as pessoas pobres, aos trabalhadores, com contratos formalizados ou não.

Não é apenas uma nova roupagem para o Bolsa Família, a forma como a MP foi recebida e discutida na mídia também aponta para uma aceitação de que o viés é para ampliar e melhorar as condições das pessoas pobres ou extremamente pobres, mesmo que apontem problemas relacionados a viabilidade orçamentária e falta de articulação intersetorial. Como ampliar auxílios/benefícios e propor ações intersetoriais de combate à pobreza sem a revogação da emenda constitucional 95/2016[iv]? É preciso se atentar ao que também está acontecendo com o Benefício de Prestação Continuada – BPC, benefício que sofreu alterações recentes, as quais estão sendo consideradas pelo governo como ampliação, mas a questão em pauta é a retirada e o encolhimento dos direitos socioassistenciais.

É pertinente pontuar que os programas de transferência de renda, auxílios e benefícios ofertados sempre foram permeados de relações de desconfiança sobre quem acessava ou tentava acessá-los – a dimensão punitiva ou o caráter da inclusão perversa sempre assombrou, o que acontece agora é que ele deixa de ser pano de fundo e se torna a motivador direto.

Imagem e trecho do texto extraídos de um blog sobre vendas

Na perspectiva do direito socioassistencial e da desigualdade estrutural, elejo como problemática a inversão das intenções sobre as mudanças, porque a MP ganha, contraditoriamente, uma aceitação e opiniões em contrário sem muito estardalhaço, o que é para sua gênese e aceitação nacional, o seu maior triunfo – sendo bem possível que não sofra grandes alterações no Congresso Nacional.

No campo que poderiam receber ataques pela mídia e outros setores acríticos da sociedade, é justamente por ele que se materializa sua autodefesa – a armadura é majoritariamente a aceitação das pessoas que concordam que a pessoa pobre continua pobre porque não se esforçou o bastante.

Não é incomum, encontrar no campo da rede socioassistencial e das políticas sociais, trabalhadores e gestores alinhados ao discurso meritocrático, que agem acriticamente servindo como barreiras adicionais para acesso aos direitos socioassistenciais. Discursos contraditórios ecoam redes à fora como mostra este exemplo: “embora eu reconheça que o problema da pobreza não é somente dos pobres, o PBF elevou o desemprego e muitos deles deixam de trabalhar porque recebem ajuda do governo”.

O medo do parasitismo é típico da moderna sociedade capitalista e deriva da equação entre trabalho e respeito, que porém, é historicamente contingente, como salienta o autor: “o valor moral absoluto atribuído ao trabalho, a supremacia do trabalho sobre o lazer, o medo de desperdiçar o tempo, de ser improdutivo – este é um valor que todos, ricos e pobres, sustentavam na sociedade do século XIX”. (Rego e Pinzani, 2014 Apud Sennet, 2004 p.131).

Simpatia para ganhar dinheiro: acorde cedo, tome banho e vá trabalhar!
Imagem: Google

Narrativas que reproduzem concepções hegemônicas sobre pobreza e as pessoas empobrecidas também estão espraiadas nas comunidades, nas cidades, nos condomínios. Não é raro testemunhar queixas de pessoas que gostariam de poder contribuir com o fim da pobreza mantendo empregados domésticos, bombeiros, jardineiros, babás, motoristas, pedreiros. Missão cada vez mais ameaçada pelo Bolsa Família porque já não acham tão facilmente estes trabalhadores à disposição e quando estes aceitam o trabalho não querem receber as diárias costumeiramente ofertadas – a queixa é porque não basta mais estalar os dedos para que pessoas, em precárias condições em relação ao mundo do trabalho, viessem eviscerados para ter alguns trocados. A superação da humilhação social passou a ser questionada pelos empregadores, começaram a perceber que alguma coisa poderia desvirtuar as pessoas do lugar atribuídos a elas, como neste trecho:

As pessoas humilhadas pela sociedade são levadas a pensar que merecem tal humilhação e que sua situação humilhante é a consequência de uma falta por parte delas. (…) aceitam sua condição e a consideram como resultado de fracasso pessoal, não de um arranjo socioeconômico determinado (…). (Rego e Pinzani, 2014, p. 56).

O Programa Bolsa Família ainda precisa sanar lacunas que ferem a dignidade humana, como a fila de espera de milhões de pessoas pela complementação da renda, assim como romper com a dimensão punitiva das condicionalidades[v], mas é certo que com este programa, a dignidade das pessoas ganhou um cenário mais promissor e possibilitou que muitas pessoas saíssem de trabalhos análogos à escravidão. Vejam com quem flerta a narrativa tratada aqui neste texto, ela é grave porque flerta com a escravização de pessoas. Pessoas pobres de bem é quem fala sim senhora e sim senhor, quem não teria o direito de questionar o valor a receber pelos serviços prestados.

Com a complementação da renda pelo PBF muitos puderam negar trabalhos análogos a escravidão.  O que gerou sempre críticas e insultos aos pobres, sobretudo às mulheres negras que tiveram a oportunidade de vivenciar a cidadania ao negar trabalho doméstico por tão pouco valor e de muita humilhação. Novas subjetividades foram de constituindo nestes atos, onde aparecia a possibilidade da escolha, surgia um sujeito impondo a sua voz – porque escolher é um ato político.

Numa sociedade de classes, as tensões estão sempre à espreita. E no avançar das poucas, mas significativas aquisições das pessoas, das famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família, a classe média, que galgou estâncias significas de poder de compra na última década, agora queria ter empregadas domésticas, bombeiros, jardineiros à disposição por míseros trocados, já que o troco maior da venda de sua força de trabalho era reservado para os cruzeiros internacionais, viagens a Miami e Paris. A classe média alta sentiu o gostinho da ascensão, mas não quis dividir o mesmo assento do avião com a antiga empregada doméstica.  

Parece que o programa já tem data do fim sem aos menos ter tido um investimento sério para superar as lacunas que ainda deixam milhões de pessoas em situação de insegurança absoluta ou sem complementação básica da renda para provimento dos mínimos para a manutenção da vida.  Contudo, para boa parte de quem está na lida do cotidiano, das pesquisas, dos movimentos sociais, sabe que a proposta não é ampliação ou reformulação das dimensões problemáticas do Programa anterior, como a das condicionalidades e das longas filas de espera, por isso, para ter alguma chance de impedir a aprovação dessa MP, essas vozes precisam ecoar.   

Este texto é uma indignação acerca de uma narrativa violenta, que mina as forças subjetivas e cidadãs de pessoas que nasceram e foram transformadas em pobres pelo único objetivo de ser massa para movimentar e aumentar a riqueza de 1 % e deixar a disputar migalhas os outros 99%. O “pagamento”, o que retorna à maioria desse contingente é cada vez mais questionado, mais flexibilizado e mais precarizado e a narrativa meritocrática para a superação individual, é o chicote dos tempos atuais.

Por fim, mesmo aguardando os desdobramentos das etapas no congresso, pode-se já sintetizar que para a MP apresentada, a assistência social retornará, institucionalmente, a ser depositária de remendos para outras políticas públicas e fará prosperar os ditames neoliberais no gerencialismo da vida das pessoas em condições de extremo sofrimento ético-político[vi]. Mas também há espaço para considerar que o estardalhaço ainda virá e que a população tome as ruas incendiando suas narrativas contrárias e reivindicatórias.  

Referências

REGO, W. L.; PINZANI, A.. Vozes do Bolsa Família: autonomia, dinheiro e cidadania. 2. Edição. São Paulo: Unesp, 2014.

SILVA, Maria Ozanira da Silva e (Coord.). O Bolsa Família: verso e reverso. Campinas, SP: Papel Social, 2016.

Sugestão de Leitura

Auxílio Brasil: Nova roupagem, velhas práticas – Jucimeri Silveira http://www.superacessoinfo.com.br/supervisualizador/visualizador.aspx?idanalisesubcanal=15708758&idemail=6186&idempresa=875&fbclid=IwAR1NarZnwI4eaXI_GeIPfybFQvxB8qsehwkHmURCC24eoLSPOEnmN8l4c1U

O que muda no “novo Bolsa Família” Programa Auxílio Brasil é marcado por benefícios acessórios que, sem orçamento, vão competir com o principal Por Letícia Bartholo, Rogério Da Veiga E Rogério Jerônimo Barbosa: https://piaui.folha.uol.com.br/o-que-muda-no-novo-bolsa-familia/


[i] Publicada no Diário Oficial da União dia 10 de agosto de 2021

[ii] http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/8124/1/BAPI_n13_Programa.pdf

[iii] https://www.gov.br/cidadania/pt-br/noticias-e-conteudos/desenvolvimento-social/noticias-desenvolvimento-social/governo-federal-cria-o-programa-auxilio-brasil-para-unificar-politicas-sociais

[iv] https://www2.camara.leg.br/legin/fed/emecon/2016/emendaconstitucional-95-15-dezembro-2016-784029-publicacaooriginal-151558-pl.html

[v] Por entendermos que o caráter punitivo atribuído às condicionalidades coloca questões importantes que devem ser consideradas, como o agravamento de situações de vulnerabilidades e riscos sociais prévios vivenciados pelas famílias que são mais propensas ao descumprimento. O que é mais preocupante é que conduz à responsabilização dos pobres por situações tipificadas como disfuncionais, desconsiderando as condições estruturais precárias da maioria dos municípios brasileiros, a quem recai a maior responsabilidade pela oferta de serviços, pela gestão das condicionalidades e acompanhamento das famílias em descumprimento. Pág. 214 Maria Ozanira

[vi] Referência ao conceito desenvolvido pela pesquisadora Bader Sawaia – PUC/SP

6 respostas para “Auxílio Brasil e o fim do Bolsa Família: o triunfo da narrativa meritocrática”.

  1. Avatar de Daniel Dias
    Daniel Dias

    Excelente texto e reflexão! Iremos presenciar mais e mais tempos difíceis.
    “(…)porque escolher é um ato político.” Uma das frases que precisa ser lembrada todos os dias.

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  2. Avatar de Lucielma Gomes
    Lucielma Gomes

    Que texto necessário.Muito bom parabéns 👏👏👏

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  3. Avatar de Maria Angela Maricondi
    Maria Angela Maricondi

    Parabéns pelo texto, Rozana! Excelente! Bj. Angela

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  4. Avatar de Bertamé

    Muito importante a discussão e o viés. Fundamental levantar que independente do personagem, a linha ideológica que crê na narrativa da meritocracia está bastante capilarizada na sociedade. A narrativa é tão furada que o próprio presidente que defende não cumpre, vide o quanto ele ajuda os filhos e o quão pouco ele produz efetivamente como parlamentar durante estes anos todos.

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  5. Avatar de Carmen Lídia de Sousa Nunes
    Carmen Lídia de Sousa Nunes

    No governo Lula o programa Bolsa-Família era o programa de um partido chamada PT (PTralha). Fui ao CRAS da minha cidade pegar informações sobre quais seriam os critérios para o recebimento desse mínimo social. Presidente da República era Dilma Rousseff. Pra minha surpresa (pasmem!), as técnicas do órgão declararam não saber. Elas preenchiam as fichas com dados do usuário e remetiam pra Brasília. Os valores? Os mais diversos, desde 135 reais até 500 reais.
    Ah! Me poupem! Porque vcs do SUAS nunca disseram nada a respeito disso?

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  6. Avatar de Carlos Denis de Campos Pereira
    Carlos Denis de Campos Pereira

    Parabéns pelo artigo. Trata-se de um registro histórico do retrocesso da Política Nacional de Assitencia Social no Brasil pós golpe de 2016. Trata-se de implantar narrativas no lugar de uma ação concreta. Trata-se de enganar o outro, mas não qualquer outro com recursos para viver, trata-se de um outro sem recursos para viver. É uma crueldade. Conclusão: a meritrocacia é uma narrativa e não um acontecimento em si. A assistência social regridirá ao neoliberalismo do quanto vale ou é por quilo?

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Comentários