Assédio Moral na Assistência Social: Introdução ao debate


“Nos serviços públicos o assédio moral tende a ser mais frequente em razão de uma peculiaridade: o chefe não dispõe sobre o vínculo funcional do servidor, não podendo demiti-lo desmotivadamente, passa a humilhá-lo e sobrecarregá-lo de tarefas inócuas, ou não repassa tarefas, indiferente ao custo social de sua postura, quase sempre impune. Infelizmente, em muitos casos percebemos que as pessoas que ocupam cargos de confiança não possuem qualificação técnica e preparo para o desempenho da função”. Graciany Almeida, 2011.

A partir de uma postagem no Instagram @psicologianosuas sobre assédio moral na assistência social, recebi muitas mensagens de profissionais que estão sofrendo com perseguições, represálias e conflitos intensos nas relações interpessoais no trabalho.

O objetivo desde texto é apontar para a urgência de pautarmos sobre assédio moral na assistência social, propondo algumas reflexões iniciais, porque acredito ser necessário fazer este debate neste campo que é um dos setores/pastas do executivo que mais sofre interferência político partidária (claro, na versão politicalha), uma vez que se faz urgente intervenções e medidas de promoção e proteção quanto a saúde da trabalhadora e do trabalhador do SUAS.

 A ocorrência de assédio moral já é estudada em empresas privadas e em várias instituições públicas, mas quanto ao campo da assistência social, em uma rápida pesquisa, percebe-se que há uma invisibilidade e indiferença sobre tema neste campo de trabalho, assim como há uma confusão sobre a conceituação de assédio moral, uma vez que muitas profissionais mencionaram muitas experiências, principalmente nas relações com a chefia, mas boa parte pode ser caracterizada como conflito interpessoal. É importante mencionar que assédio moral também ocorre entre pessoas com relações simétricas de poder.

Queixas no cotidiano de trabalho são recorrentes, no entanto, as possibilidades e estruturas para buscar amparo legal e psíquico são escassas ou até mesmo inexistentes em muitos locais.  Inferir que tal dificuldade tem a ver com a falta de políticas de promoção e proteção à saúde das pessoas em vivência de violência psicológica não é exagero, até porque é também defender que não há interesse político e público com a saúde de quem, por alguma razão (ou várias), tem causado “transtornos” ao andamento do projeto intencional de falência de uma assistência social pautada em princípios e diretrizes para romper com o assistencialismo e com o pacto de ser uma política para mero apaziguamento das agruras das pessoas que usam a rede socioassistencial e das(os) trabalhadoras(res).

A(o) trabalhadora(r), vítima desse tipo de violência psicológica, não encontra espaço e apoio para o debate público nem mesmo entre os colegas de trabalho, porque impera a lógica individualista, do salve-se quem puder. Assim, vai se tornando muito comum desfechos como transferência arbitrária ou pedidos de demissão e até mesmo de exoneração – não raras vezes, são processos que provocam intenso sofrimento e até mesmo o adoecimento psíquico, motivo também de um enorme contingente de afastamento do trabalho – àqueles que podem ter acesso a previdência social. Bom marcar também que o próprio fato de precisar se afastar por motivos de adoecimento, agrava a vivência de assédio moral.

Assim chegamos a uma pergunta: se nem mesmo o assunto é debatido, como ter mobilização razoável para criar estruturas de cuidado?

O debate será mais profícuo se considerar que assédio moral é também um problema de determinações sociais, sendo fruto de um campo minado de tensões e disputas por migalhas de sobrevivência no mundo do trabalho, deliberadamente precarizado. Então, se faz necessário conceituar o que é assédio moral e por que é tão recorrente confundir este tipo de violência com “relações conflituosas”. Quanto a esta última questão parece que tem a ver com o fato de ser uma violência não conceituada no campo discursivo das trabalhadoras da assistência social, dificultando a identificação e principalmente uma ausência de ancoragem nos aspectos da precarização das condições de trabalho e vínculos trabalhistas.

Mas e o que é assédio moral?

 “O assédio moral consiste na exposição dos trabalhadores a situações humilhantes e constrangedoras, geralmente repetitivas e prolongadas, durante o horário de trabalho e no exercício de suas funções, situações essas que ofendem a sua dignidade ou integridade física. Em alguns casos, um único ato, pela sua gravidade, pode também caracterizá-lo”. (SOBOLL, 2006).

Para a autora francesa Marie-France Hirigoyen, grande introdutora do tema no Brasil, potencializado pelos trabalhos da médica Margarida Barreto no início deste século, o assédio moral “(…) é toda e qualquer conduta abusiva manifestando-se, sobretudo, por comportamentos, palavras, atos, gestos, escritos que possam trazer dano à personalidade, à dignidade ou à integridade física ou psíquica de uma pessoa, pôr em perigo seu emprego ou degradar o ambiente de trabalho”.

Considerando a perspectiva crítica com a qual estou tentando abordar este tema, é válido registrar que o pioneirismo de Hirigoyen faz com que suas obras sejam mundialmente conhecidas, no entanto, têm recebido críticas por tratar o assédio moral de maneira inclinada aos aspectos individuais e psicologizantes.

Conhecer e reconhecer este tipo de violência, pode viabilizar narrativas e criar estratégias coletivas para romper com o assédio moral, estabelecendo argumentos consistentes para a criação de núcleos de promoção e proteção à saúde das(os) trabalhadoras(es) no SUAS. No entanto, essas políticas devem considerar que o assédio moral está diretamente conectado com as múltiplas dimensões de aniquilamento do bem viver traçadas pelo mundo capitalista, bem como ter ciência de que o serviço público tem suas particularidades, mas não fica de fora das tramas estruturais desse mundo. Há inclusive o gerencialismo do setor público, que vem sendo cada vez mais implantado pela lógica neoliberal.

Caminhando para o fechamento deste texto introdutório, cabe uma reflexão quanto ao perigo da judicialização das relações interpessoais e dos problemas de determinação social que muitas vezes são tratadas apenas sendo de ordem individual.  Defender agenda pública quanto a ocorrência e consequências do assédio moral na vida das trabalhadoras não deve incutir defesa de ações punitivistas, mas sim, criar estratégias para invisibilizar modos de relações de poder que abusam e violam direitos de trabalhadores. E daí a encruzilhada: como desfazer dessas relações de poder se elas são estruturais? Elas não cairão somente pela constatação e pela “visibilidade” de pessoas adoecidas – adoecer já está contabilizado como um mal necessário.

Portanto, acredito que mais do que definir o que é assédio neste campo, devemos falar do que faz sofrer e adoecer. E quem está disposta(o) a compreender que fenômenos como o assédio moral é mais uma faceta das precarizações do mundo do trabalho e não meramente uma questão de conflitos pessoais entre potenciais perversos, canalhas ou psicopatas? Inadiável é o fato de que medidas de enfrentamento a este tipo de violência precisam ser tomadas para minimizar as agudizações de milhares de pessoas que são violentadas no e pelo trabalho.

E para um vigor a mais nestas provocações: não é de se espantar que grande parte das pessoas que relatou assédio moral, conforme narrativa, está alinhada ao compromisso social crítico da profissão e revela que recorre rotineiramente a posicionamento ético-político, lutando contra o tarefismo e ações meramente pragmáticas. Ou seja, passam a sofrer retaliações e humilhações por estarem respondendo como profissionais indo contra ao tecnicismo e funcionalismo.

Por fim, considero pertinente deixar elencadas algumas referências para uma possível ancoragem para os debates e ações de enfrentamento às práticas de assédio moral na assistência social.

Um último lembrete a você que é vítima de assédio moral: busque pelos seus direitos e se estiver com sofrimento muito intenso, beirando a um colapso, procure cuidados em saúde mental, mas não antes de compreender que o seu direito violado é sobretudo o de um coletivo, o das(os) trabalhadoras(res).

Referências:

ALMEIDA, G. N. Assédio moral no serviço público: uma revisão sobre as implicações na saúde dos trabalhadores e o aporte normativo brasileiro. Orientadora: Idê Dantas Gomes Gurgel. Monografia (Especialização Especialização em Gestão do Trabalho e Educação na Saúde) – Departamento de Saúde Coletiva, Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz) – Recife, 2011.

HIRIGOYEN, Marie-France, Assédio Moral – A Violência Perversa no Cotidiano, 3ª ed., Rio de Janeiro: Ed. Bertrand, Brasil, 2002. p.65.

Sugestão de referências:

Para entender como o tema é tratado no campo jurídico: https://www.youtube.com/watch?v=oyBPbc4YEC8

O documentário “A dor (in)visível – Assédio Moral no Trabalho” realizado pelo Ministério Público do Trabalho no Rio Grande do Sul (MPT-RS) – Procuradoria do Trabalho no Município (PTM) de Caxias do Sul; do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) – Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE) em Caxias do Sul; e do Governo Federal.

Artigos:

RAICHELIS, R. Proteção social e trabalho do assistente social: tendências e disputas na conjuntura de crise mundial. Serviço Social & Sociedade [on-line], São Paulo, n. 116, p. 609-635. 2013.

RIBEIRO, V. A. B.; AFONSO, M. L. M. Assédio Moral e Psicossocial: Um Fenômeno Transdisciplinar. II CONINTER – Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades. Belo Horizonte, de 8 a 11 de outubro de 2013.

VIEIRA, C. E. C.; LIMA, F. P.A.; LIMA, M. E.A. E se o assédio não fosse moral?: perspectivas de análise de conflitos interpessoais em situações de trabalho. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, v. 37, p. 256-268, 2012.

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5 comentários em “Assédio Moral na Assistência Social: Introdução ao debate

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  1. Adoro as matérias do blog. Sempre tão úteis e atuais. Como sempre esta de parabéns. Esse assunto despertou o meu interesse quando ainda estava na faculdade e foi quando li o livro todo HIRIGOYEN, Marie-France, Assédio Moral – A Violência Perversa no Cotidiano, 3ª ed., Rio de Janeiro: Ed. Bertrand, Brasil, 2002.

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  2. Texto maravilhoso, tenho vivenciado, ouvido e partilhado de algumas situações e confesso à vcs “haja estômago” imaginem uma política pública de garantia de direitos a gente ouvir, “me convença da sua opinião”, “não estou segura sobre esse assunto” , “escrevam que eu leio no final “ e aí eu sempre chego as mesmas perguntas: Onde acontece a humanização do SUAs? Onde deveria ser o começo? E o cuidado de quem cuida? … São inúmeras às perguntas e muitas pessoas trabalhando pela sobrevivência do outro sem o respeito devido. Precisamos repensar onde estamos errando nessa pirâmide e olho a Pandemia tem elevado esses comportamentos e adoecendo às pessoas.

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