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Por Alice DiGam*
Numa sociedade complexa e globalizada — em que o invisível coronavírus nos obriga unir, reunir, estudar, trabalhar e refletir sobre o sentido de todos nós juntos — descobrimo-nos seres em coexistência, ainda que vivamos modelos hierárquicos, com ênfase na relevância profissional e no status econômico. Bem da verdade, haveremos de nos descobrir, em breve, multiprofissionais metidos em uma rede interdependente de saberes e cujo ponto de culminância será o conjunto de soluções oferecido à comunidade. Eis aqui, também, nossa aposta.
Momento oportuno para a valorização de conhecimentos não institucionais, de profissionais, de trabalhadores e de cidadãos comuns sob uma nova perspectiva: tanto as práticas arroladas nas listas de serviços essenciais para a população em detrimento do isolamento social, visibilizando assistentes sociais, psicólogos, enfermeiros, fisioterapeutas, coveiros, médicos entre outros profissionais, quanto sujeitos invisíveis que vêm se arriscando cegamente para sobreviver, a exemplos de faxineiros, cozinheiros, motoristas, motociclistas e ciclistas na função de entregadores de produtos em domicílio.
É igual modo importante mencionar o onde estamos, recuperar no discurso o território dentro do qual uns são forçados a manter os pés isolados do contato com o outro enquanto outros são obrigados a encarar o front. Ocupar um lugar no espaço brasileiro, feito da somatória de povos, de diferentes culturas, de biomas os mais diversos, fatiado em divisões administrativas invisíveis, mas que determinam modos de fazer e gestar as políticas públicas, as locais e as de caráter nacional. Falar sobre o que nos distingue socioterritorialmente — na perspectiva da Vigilância Socioassistencial — implica discorrer sobre os reflexos da gestão da Política de Assistência Social e do SUAS, em especial, de município para município e de estado para estado ou vice-versa. Nesse sentido, significa encarar o fato de que vivenciamos gestões mais ou menos consolidadas, mais ou menos equipadas, mais ou menos preparadas para enfrentar a crise sanitária associada ao novo coronavírus.
Às vezes mais, às vezes menos.
A Vigilância Socioassistencial é um setor do SUAS, no âmbito da gestão da Política de Assistência Social, capacitado para elaborar diagnósticos socioterritoriais, prever e antecipar a ocorrência de riscos sociais, mitigar situações de alta complexidade instaladas, entre outras situações, de modo a garantir maior assertividade na tomada de decisão pelo seu corpo gestor e conduzir a operação das atividades. Aqui uma realidade que não correspondente àquilo que se assiste em municípios brasileiros; mesmo aqueles que dispõem de um setor oficial,e do ponto de vista do trabalho técnico operativo, uns funcionam aqui e ali melhor e outros aqui e ali pior. Se inconstante e titubeante e desencontrada a oferta de um benefício assegurado, será ainda possível falar em política pública?
É preciso sublinhar a prevenção como hábito muito mais barato e eficiente do que a atuação na alta complexidade. Isso serve para o SUAS, para o SUS, para todos; é premissa para a vida.
O mesmo se aplica tanto para os municípios que possuem Plano de Redução de Risco de Desastres (PRRD) quanto para aqueles que não o possuem. Certamente, quem passou por situação de calamidade pública e/ou elaborou seu PRRD deve ter ampliado seu repertório e até aumentado a capacidade de respostas a situações calamitosas possíveis — é o que foi denominado “cidade resiliente” e 59,4% dos municípios brasileiros ainda não possuem um para chamar de seu (IBGE, 2020).
Na esteira dos saberes apreendidos, um sábio como Morin é capaz de afirmar que “as certezas são uma ilusão”, que não basta ter um plano, não basta instalar um setor de Vigilância, são fundamentais capacidades objetivas para implantá-los, além do reconhecimento de que o aprendizado depende de trocas realizadas no dentro da experiência. Os planos, as elaborações e as reelaborações de diagnósticos, de ações, de composição de atores e de funções tratam, exatamente, disso. Método análogo foi adotado no âmbito da Organização Mundial de Saúde (OMS), humilde em reconhecer que não tem respostas concretas para todas as dúvidas que se colocam. A agência acompanha a evolução da pandemia — país a país, dia a dia — e está altamente envolvida com os investimentos em prevenção, mitigação e pesquisas para descoberta da cura para a doença. Tudo dito sustentado nos saberes que são aprendidos rotineiramente, a partir das circunstâncias relatadas pelos países membros e pelos achados de pesquisas.
Mas qual o ponto que nos une hoje? Planejar a atuação profissional no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) que, por sua vez, é transversal e perpassa outros sistemas e políticas públicas, ainda que pouco homogêneo na sua manifestação operativa a maneira de um sistema único.
O que deveríamos fazer ou saber e saber fazer, considerando que passaremos por uma calamidade advinda de uma pandemia associada a uma crise sanitária? “Se preparar para o pior e esperar pelo melhor” escreveu Ana Claudia Quintana Arantes, médica geriatra, especialista em cuidados paliativos, PhD no cuidado humanizado do outro e que tem por profissão e escolha acompanhar seus pacientes até o momento de suas mortes. Aquela profissional da saúde que contrapõe a afirmação de Morin pela única certeza que podemos tirar da vida.
Os trabalhadores do front, assim como o trabalhador do SUAS, devem estar conscientes dos fatos, devem estar informados, acompanhar a agenda de notícias, inteirar-se da legislação e normativas vigentes, assim como compartilhar com equipes e gestores aquilo que apreendem e observam. Contudo, é precioso filtrar as informações, fontes de dados e conteúdos. A enorme quantidade de lives, artigos, notícias de jornal, blogs, sites, cursos etc., podem repercutir efeitos paralisantes ou pior, polarizar a opinião entre o certo e o errado, o preto e o branco, como se não existissem cinzas na paleta de cores.
A realidade para os trabalhadores do SUAS está pelo avesso. Ainda que já considerada a frágil infraestrutura para realização dos trabalhos — insuficientes os recursos humanos, os equipamentos, o orçamento, a remuneração, a formação continuada, há uma avalanche de grandes novidades. Pela primeira vez na história, o profissional do SUAS foi catapultado para o posto de profissional estratégico na área da saúde. Pela primeira vez na história, a sociedade foi confrontada com a relevância inconteste do profissional do SUAS para a implementação e manutenção de políticas públicas. O que a pandemia nos revela é aquilo que sempre, toda vida, esteve diante dos olhos. Arremessado para dentro dos epicentros viróticos, acompanhado de orientações desencontradas, nenhuma capacitação em vista, nem equipamentos de segurança, o profissional do SUAS foi pré-condecorado e instado a lidar com aquilo que ninguém conhece.
Temos notícias de experiências muito interessantes de órgãos gestores bastante hábeis na operação, preparo e orientações para o enfrentamento do novo coronavírus. Temos notícias e experiências contrárias.
Tudo o que se sabe tem sido elaborado coletivamente pelas equipes locais desde a divulgação de iniciativas adotadas e experimentos realizados por grupos comprometidos com seus territórios. Mas o comprometimento não é uma escolha, simplesmente. O comprometimento é resultado de planejamento e de apoio institucional. O que sabemos, até então, é que muitos têm adotado o cartão alimentação para cestas básicas, atitude que implica em menor trânsito de pessoas na operação. Menos gente nas ruas. Menor contato. Menores as chances de contaminação. Outros contam sobre a eleição de trabalhadores para atuar em home office, a partir da classificação e presença de morbidades adquiridas, um inteligente e generoso gesto de empatia entre profissionais. Tivemos notícia de municípios que adotaram o adicional de insalubridade para os profissionais atuantes na linha de frente. São micromovimentos que põe a roda do enfrentamento para girar, sobretudo, quando o Estado se distrai com a crueldade do desgoverno.
Fora uma ou outra intervenção, estamos lidando com novos códigos de convivência social que, ao que parece, caracterizarão a vida coletiva daqui para frente. Devem ser chamadas políticas de cooperação. A adoção do uso de máscaras, o distanciamento mínimo de dois metros em filas, evitar aglomerações, uso do álcool em gel antes de adentrar estabelecimentos comerciais e uma enorme gama de outras práticas que apoiam tecnologias e inovações. Relações sociais remotas, assim como os serviços em geral, desde educação a distância à teleconsultas de saúde.
Em princípio, atuar com flexibilidade e ênfase nas orientações das agências de saúde tem sido das estratégias mais eficientes. Conhecer e trocar saberes com tal campo de conhecimento pode ser absolutamente esclarecedor e útil para repensar práticas relacionais como as adotadas nos serviços, até então, essencialmente presenciais.
Nesse sentido, é preciso destacar os serviços que têm atuado em sistema de plantão, com rodízio entre os trabalhadores, suporte eventual por telefone, WhatsApp ou similares. Modelo que demanda comunicação com a comunidade, fazendo chegar informações, orientações e a notícia das novas práticas assumidas para o enfrentamento da pandemia. Há, ainda, aqueles que enviam recados para famílias; os que atendem em tendas abertas e ventiladas; os que lançam mão de vídeos informativos; outros de informes nas rádios locais e comunitárias — um enorme contingente de trabalhadores alcançando a população, ali, onde ela está.
Em pesquisas com trabalhadores do SUAS — especialmente os envolvidos na operação de resposta a desastres — são comuns os relatos que revelam sentimento de impotência para arrumar aquilo que obviamente está errado; discordância frente a fragilidades dos contratos de trabalho, da infraestrutura, das condições objetivas para solucionar o que é urgente. A contrapartida é, finalmente, a ansiedade depositada na resposta, o anseio por capacitação instantânea ou por um salvador, talvez. Estafa. Absoluta. Talvez a razão pela qual a segurança do trabalhador sempre deve estar em primeiro lugar. O trabalhador do SUAS é a ferramenta do trabalho social. Se sua saúde vai mal, sua resposta vai mal. Se sua formação vai bem — sua condição de trabalho, sua remuneração, o reconhecimento da sua relevância e da importância da continuidade daquilo que realiza diariamente — sua resposta vai bem. Quase matemática em que dois e dois são quatro. Simples assim.
Sublinha-se o ponto para que não sejamos nós os vetores de espraiamento do vírus. Para que nossas atitudes sejam sempre a do exemplo e cuidado para com o outro. O que demanda ampliar a relação com a pasta da Saúde e também da Educação, por dois motivos principais: fomentar a formação específica e o conhecimento acerca das iniciativas planejadas para atuar com a população.
A circunstância que pede concentração e foco. Ponha ênfase sobre sua segurança: primeiro a máscara em você! Depois sua família, o entorno, o trabalho, a segurança coletiva. Trata-se de uma pandemia por vírus: ninguém o vê, não fica paradinho na área de abrangência do CRAS, não obedece aos limites administrativos. Porque desconhecemos, ainda, as melhores soluções para todos os problemas que se apresentam, devemos, antes, cuidar do trabalhador. Porque decidimos reconhecê-lo, provisoriamente, quando ninguém mais sabe como fazer, devemos apoia-lo e criar condições para que sua prática não seja engolida pela ingerência e pela exposição aos riscos.
*Alice Digam
Curiosa investigadora, brasileira, mãe, socióloga, mestre e doutora em Serviço Social, Políticas Sociais e Movimentos Sociais. Possui experiência em trabalho social e ciência política, com especialidade em desenho de diagnósticos, construção de cenários e avaliação de políticas públicas, entre elas, políticas de enfrentamento a calamidades públicas e ações de prevenção de desastres. (Via Lattes: http://lattes.cnpq.br/7716352580252687)
*Participante da primeira edição do Sextas Básicas – encontros virtuais do Blog Psicologia no SUAS com coorganização de Joari Carvalho.
*Texto decorrente do tema debatido no Sextas Básicas #1 realizado no dia 17 de abril de 2020 pelo Canal do YouTube
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