Trabalhadora/o do SUAS tem como “missão” empoderar as pessoas?

Ninguém empodera ninguém. Esta afirmativa pode ser considerada uma paráfrase ao postulado por Paulo Freire na obra Pedagogia do oprimido “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”. Pág.78  Não vejo outra maneira de começar a falar de empoderamento sem trazer para a roda Paulo Freire. Autor brasileiro precursor desse conceito, contudo foi mal interpretado e esse mundo que gira cada vez mais veloz e volátil tratou de traduzir e usar empowerment como o ato de dar poder a alguém ou de obter poder, assim, tal conceituação ganhou o mundo de modo muito despolitizado. O objetivo deste texto é trazer criticidade a esse conceito que invadiu as organizações públicas, privadas, ongs, movimentos sociais e tantas outras instituições, não escapando nem as religiosas. Lá em 1989, Paulo Freire escreveu, “a noção de empowerment, na sociedade norte-americana, tem sido cooptada pelo individualismo, pelas noções individuais de progresso” pág.71 . Empoderamento deve ser tratado para a transformação social e por isso empoderamento  individual não é suficiente para um mudança social e nosso autor continua “Com nossas profundas raízes no individualismo, temos uma devoção utópica por nos realizar sozinhos, por nos aperfeiçoar sozinhos, por subir na vida, subir através de nosso próprio esforço, ficar ricos através do esforço pessoal”. Acho que seria bem isso que Freire traria para uma análise atual sobre o fenômeno de Coaches e empreendedores, estes que usam e abusam da palavra empoderamento.  São três as principais referências que elegi para elaborar este texto: No artigo de Baquero encontrei amparo para as minhas inquietações, e me impulsionou a continuar estudando este conceito. Baquero faz um apanhado histórico do termo e debruça sobre o diálogo entre Freire e Shor e sobre o empoderamento da classe social. Sobre isso a autora postula que “Isso faz do empowerment muito mais do que invento individual ou psicológico, configurando-se como um processo de ação coletiva que se dá na interação entre indivíduos, o qual envolve, necessariamente, um desequilíbrio nas relações de poder na sociedade”. (BAQUERO Pág.181). Me apoiei no livro diálogo do Paulo Freire com Ira Shor “Medo e Ousadia: o cotidiano do professor, onde dedicam o capítulo 4 à explanação sobre empowerment.  Para ler o capítulo e o livro clique em “Baixar” Comecei a estudar mais sobre este conceito quando estava me preparando para uma palestra e queria já fazer algumas provocações sobre empoderamento – a palestra foi em 2016 (olha há quanto tempo queria escrever sobre isso!). Mas o bom mesmo de escrever agora é que pude ter acesso ao livro da Joice Berth, “O que é empoderamento?” (2018) da coleção feminismos plurais, coordenado pela filósofa Djamila Ribeiro. A cada parágrafo do livro eu fui conversando com ela, agradecendo por cada linha. Mas também pensei que eu não deveria me preocupar em desenvolver o conceito de “empoderamento” neste texto porque o que eu devo fazer é indicar o livro pra todo mundo e dizer que para quem atua na Assistência Social (e claro em outras políticas) o mesmo torna-se imprescindível, porque tem exatamente as críticas e construções necessárias para suporte teórico e prático. A autora conceitua empoderamento percorrendo várias autoras e autores e traz uma questão fundamental que é um estudo que destaca a necessidade de enfrentamento das estruturas racistas e sexistas. Para Joice, o conceito de empoderamento é instrumento de emancipação política e social e não se propõe a “viciar” ou criar relações paternalistas, assistencialistas ou de dependência entre indivíduos, tampouco traçar regras homogêneas de como cada um pode contribuir e atuar para as lutas de dentro dos grupos minoritários. Página 105 (versão kindle). A autora nos lembra que a Teoria do Empoderamento, na concepção de Paulo Freire vem da Teoria da Conscientização Crítica e que para esse autor a conscientização é teorizada a partir do social e o coletivo. Quero também enfatizar o conceito de empoderamento que a autora traz da feminista norte-americana Nelly Stromquist: “O empoderamento consiste em quatro dimensões, cada uma igualmente importante, mas não suficiente por si própria, para levar as mulheres a atuarem em seu próprio benefício. São elas a dimensão cognitiva (visão crítica da realidade, psicológica (sentimento de autoestima), política (consciência das desigualdades de poder e a capacidade de se organizar e se mobilizar) e a econômica (capacidade de gerar renda independente)”. Eu poderia citar vários trechos do livro, mas ficaria enfadonho e fugiria do objetivo do texto, por isso, vamos combinar o seguinte: Se você for usar o conceito, ideia de empoderamento nos seus trabalhos, leia este livro antes? No #desafio que lancei no @psicologianosuas, oitenta por cento problematizaram a questão dos grupos no CREAS e somente o restante questionou o uso do termo “empoderar”, ou seja, somente vinte por cento entenderam um equívoco na maneira como este conceito estava sendo tratado. Isso vai ao encontro do que é possível observar quanto ao uso desmedido e banalizado do conceito de empoderamento, o que tem esvaziado o seu potencial e trazido despolitização e reprodução de discursos e ações assistencialistas, tuteladoras e acríticas, embora se preguem exatamente o contrário como quando dizem: “nós queremos empoderar essas mulheres, ou esses jovens”. Quem atua no SUAS deve saber o quanto é proposto que as relações sejam horizontais no desenvolvimento do trabalho social com famílias nos serviços e na rede socioassistencial. Proposta que inviabiliza um posicionamento onde o profissional – a/o técnica/o de referência, teria como objetivo o empoderamento das pessoas e das famílias. A proposta de empoderar alguém é puro engodo e consequência do neoliberalismo onde as pessoas deverão ser cada vez mais responsáveis por si mesmas e o Estado cada vez mais omisso. Portanto, a/os trabalhadoras/es devem ser críticas o bastante para não se tornarem agentes manipuladoras, mas sim transformadoras. Trabalhar empoderamento na Assistência Social, ou em qualquer outra instituição, não é sobre ter ou dar autonomia/poder, é mediar questões sobre desigualdade social e os seus desdobramentos, desigualdade de gênero, pobreza, racismo estrutural, machismo, sexismo, misoginia, feminicídio, xenofobia, feminismo, feminismo negro, classe social, violência institucional, (in)segurança pública, (in)segurança alimentar

A Psicologia no CREAS: os desafios da mudança de um paradigma

Por Lívia de Paula* A questão da prática da (o) psicóloga (o) no SUAS, embora seja um assunto no qual já observamos muitos avanços, ainda causa dúvidas, inquietações e angústias para as (os) profissionais que atuam na Política de Assistência Social. Sobre esse tema, Rozana Fonseca escreveu dois textos riquíssimos há pouco tempo aqui no Blog. Sugiro a leitura: Atendimento psicossocial ou interdisciplinaridade na assistência social? e Abordagem psicossocial e a práxis na Assistência Social. Em um deles, ela trabalha as diferenças entre os termos interdisciplinaridade e psicossocial. É de suma importância para nós, profissionais do SUAS, compreendermos essas diferenças, para que possamos atuar em conformidade com aquilo que entende-se como essencial aos preceitos da Política de Assistência Social. No segundo texto, Rozana vai trazer o conceito de psicossocial como metodologia. Contidas no seu texto, estão referências bibliográficas preciosas sobre o assunto. Ela aponta também para a experiência da Saúde Mental no campo da Atenção Psicossocial, que muito pode nos auxiliar para a compreensão desta abordagem. São dois textos bastante completos sobre o tema, com os quais pretendo dialogar nesta minha contribuição. O texto de hoje atende a solicitação de uma leitora deste espaço. Seu desejo é de ampliar sua compreensão acerca do atendimento psicossocial pela psicóloga (o) no CREAS. Sobre este tema, Pereira Junior (2014) conduziu sua pesquisa de mestrado que gerou um livro referenciado ao final deste texto e o qual sugiro para leitura. Nesta pesquisa, o autor investigou a atuação das (os) psicólogas (os) nos CREAS de quatro municípios da região metropolitana de Belo Horizonte, a partir de sua própria inserção em um destes equipamentos. Pereira Junior (2014) aponta um aspecto sobre o qual tenho refletido bastante nestes anos de atuação no CREAS do meu município: a amplitude de abrangência do trabalho do CREAS, sobretudo do PAEFI, que convoca a (o) profissional a um imenso conjunto de conhecimentos necessários para a intervenção nas situações atendidas. “Apesar de estarem todas na categoria violações de direitos, […] cada uma dessas situações demandaria um embasamento teórico e metodológico próprio.” (PEREIRA JUNIOR, 2014, p. 61) Sob meu ponto de vista, esta é uma importante particularidade que perpassa a atuação da Psicologia no CREAS. O desafio de conhecer minimamente cada um dos públicos e das violações com as quais irá se deparar cotidianamente. Em que pese entendermos que o foco central é o trabalho com a família, para que este trabalho seja qualificado é primordial termos contato com o percurso histórico da defesa de direitos de cada público (criança/adolescente, mulher, idoso, pessoa com deficiência, público LGBTQI+, entre outros) e com as teorias e metodologias desenvolvidas no que concerne a cada um destes públicos. É, a meu ver, um dos primeiros quesitos sobre o qual a (o) profissional do CREAS precisará se debruçar. Quais os públicos que eu atendo? O que eu sei sobre eles? Antes, é claro, faz-se necessário que essa (e) colega conheça o que é o SUAS, as Proteções Sociais e o CREAS. Outra questão abordada pelo mesmo autor é a demanda que chega até os CREAS de verificação e apuração de denúncias as mais diversas, o que produz atravessamentos de toda ordem no trabalho neste equipamento. Esta, talvez, seja a pauta mais difícil para nós técnicas (os) deste serviço. Seu enfrentamento não é simples, revela-se complexo e até ameaçador. No entanto, nosso desconhecimento quanto às diretrizes do SUAS pode contribuir para a perpetuação desta realidade. O trabalho psicossocial ofertado nos nossos equipamentos, embora atravessado por este tipo de demanda, não deve se omitir na sua função de promotor de direitos, de empoderamento e autonomia dos usuários frente à complexidade das violências por eles vivenciadas. Aqui no Blog, podem ser encontrados diversos textos que tratam dessa relação desafiadora com o Sistema de Garantia de Direitos – SGD. Eu mesma já escrevi alguns. Dê uma pesquisada, leia, se atualize sobre o assunto. Cotidianamente temos sido chamadas (os) a nos posicionar a esse respeito. Seja através do envio de relatórios, seja em reuniões com os profissionais dos órgãos de justiça. A clareza do que fazemos e dos objetivos do nosso trabalho é que nos trará a segurança necessária para esses momentos. Além destas duas, muitas outras questões estão postas quando se trata da atuação da (o) psicóloga (o) no CREAS, mas sendo o intuito do Blog primar por textos mais curtos e simples, irei focar, daqui para frente, em uma última e crucial questão, que é discutida em diversos materiais que pesquisamos: a interdição da psicoterapia e a “obrigatoriedade” do trabalho psicossocial no espaço do SUAS e, consequentemente do CREAS. Não é uma questão nova, mas me interessa pensar hoje como isso chega para as (os) profissionais dos serviços. Sobre isso, o autor com o qual estamos dialogando até aqui vai dizer que no CREAS, não raro, a (o) psicóloga (o) é demandada, por diversos órgãos e até por outros equipamentos da Assistência Social, a avaliar o usuário sob o ponto de vista da presença ou não de um trauma e de seu tratamento, inclusive com a pressão e vigilância para obtenção de resultados rápidos e precisos. Eu mesma, enquanto profissional de CREAS, já recebi solicitações similares a essa. Fica clara a dificuldade que ainda se apresenta no que refere-se à atuação psi neste equipamento. Por se tratar de um espaço que atua com situações de violência, ainda se tem uma expectativa de que a Psicologia está ali para “tratar” dos aspectos subjetivos do ocorrido, mesmo que muitas vezes o discurso seja de que não é essa a demanda. Nunca é demais lembrar, como aponta o autor citado, que: Devido a sua complexidade e transversalidade, a construção de uma metodologia de intervenção no CREAS demanda saberes de muitos campos de conhecimento, como a Psicologia, o Serviço Social, a Sociologia, a Ciência Política, a Pedagogia, o Direito, entre outros. (PEREIRA JUNIOR, 2014, p.85) O autor aponta também que a noção tradicional do psiquismo encapsulado, que compreende o indivíduo separado da sociedade não abarca a atuação da (o) psicóloga (o) no SUAS e

Outubro Rosa e as agendas coloridas

Este texto é porque considero as campanhas coloridas como disfarce para os dias cinzas de quem vive em situação de desproteção social e com precário acesso a saúde e outros direitos fundamentais. Eu sempre estranhei as campanhas coloridas, considero pão e circo. Atuando em políticas de Assistência Social e Saúde participo junto com a equipe, porém questiono o objetivo e as consequências das ações e por isso registro que não estou me opondo a campanhas como meios de informação e sensibilização. O questionamento é sobre o quanto temos trazido para produções com grupos e comunidades os temas dessas campanhas com o objetivo de avaliar e questionar a qualidade ou ausência de acesso ao longo do ano. Essas campanhas têm servido a quem? Será que os maiores beneficiados não são os do setor privado? O quanto o pobre, o dependente do serviço público, têm sido ludibriado com essas campanhas? No caso deste mês “Outubro Rosa”, os exames de rastreamento trarão mais benefícios ou malefícios a essas mulheres? Para quem fica meses ou até ano aguardando vagas para diversas exames e consultas com especialistas, vale perguntar o que se ganha com exames de rastreamento porque a depender da suspeita, muitas vezes, passará por intervenção sem critérios rigorosos e/ou sem cumprimento dos fluxos entre atenção primária e demais níveis de atenção. Quanto ao Setembro Amarelo, tema do último mês, o que foi discutido no âmbito da Assistência Social quanto aos aspectos sociais do suicídio? ou ficamos reproduzindo que 90% das pessoas com comportamento suicida sofrem de depressão ou de algum outro transtorno psiquiátrico? Essa perspectiva é para ser abordada em todas as políticas públicas, ressalto aqui a Assistência Social porque se for para trazer a campanha como tema de ação e articulação setorial que seja nessa perspectiva. Novembro azul é logo ali, então vale perguntar: o que temos produzido com, sobre e para os homens? Para terminar a agenda tem o Dezembro Vermelho, o que soa bem simbólico, porque essa conta, na verdade, não fecha para quem mais precisa de proteção e dos direitos garantidos. Espero que você tenha entendido que este pequeno texto não é meramente oposição a estas campanhas, é sobretudo um manifesto em defesa e pelo aprimoramento do SUS e SUAS. Lutas essas que exigem agenda diária, de janeiro a janeiro.