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Por Tatiana Roberta Borges Martins[1]
A cesta básica de alimentos é uma velha conhecida da política de assistência social, ela existe desde as primeiras formas de prestação de auxílio à população e observo que, pelo menos entre as/os assistentes sociais, existe uma relação espinhosa com esta provisão, talvez pelo reducionismo do senso comum, que classifica a avaliação socioeconômica para concessão de benefícios como a única atribuição desta profissão, mas, sobretudo, pelo viés de caridade e moeda de troca que a cesta básica carrega ao longo da história e que a política de assistência social procura romper ao pautar benefícios socioassistenciais como direito de quem necessita.
Não pretendo problematizar neste espaço sobre qual trabalhador/a do Sistema Único de Assistência Social/SUAS deve conceder a cesta básica para o cidadão, deixo esta tarefa para a Rozana Fonseca (risos), a intenção é realizar uma reflexão de como todos nós, que atuamos nesta política pública, nos relacionamos com esta forma de oferta que, segundo os dados oficiais[i], é a maior concessão referenciada como benefício eventual na assistência social.
Além disso, sabendo que, em nossa sociedade, a doação de alimentos ainda se configura como uma prática ligada à religiosidade dos “cidadãos de bem” que tem o dever de praticar esmolas para ficarem em paz com suas consciências, proponho uma breve, mas indispensável análise, de como o poder público trata a questão da oferta de alimentação: também como um favor ou como um direito humano fundamental e universal?[ii]
Recentemente, no espaço de educação permanente da região[iii] em que atuo, tivemos a presença da brilhante pesquisadora da temática “benefícios eventuais”, Drª. Gisele Bovolenta, que trouxe a tona antigas inquietações acerca do tema e as provocações que efetuo aqui são baseadas em seus textos, os quais recomendo a todas/os trabalhadoras/es da área conhecê-los.
Os benefícios eventuais na assistência social
A Política Nacional de Assistência Social/PNAS quando define que sua principal função é a proteção social está incluindo a integração de serviços e benefícios socioassistencias, o que engloba o benefício eventual como parte das seguranças sociais, mais especificamente a segurança de sobrevivência/renda. No entanto, é evidente que os avanços obtidos no SUAS não abrangeram, de forma significativa, os benefícios eventuais. Gisele Bovolenta (2017) afirma que os benefícios eventuais estão nominados na Lei Orgânica de Assistência Social/LOAS, mas ainda não foram conceituados, ou seja, não existem muitos estudos e nem muitos indicativos de quais os tipos e espécies de benefícios de vulnerabilidade temporária devem ser ofertados pela assistência social, se estes benefícios devem ou não ser pagos em pecúnia, ou qual o local apropriado para a entrega, tampouco há precisão sobre as formas de gestão, regulamentação e financiamento destas provisões.
A pouca atenção dos municípios com esta parte da proteção social e principalmente a negligência da maioria dos estados contribuem para a manutenção da visão das pessoas que solicitam estes benefícios como carentes, desvalidas, coitadas, folgadas, acomodadas, entre outros termos pejorativos que se distanciam da noção de cidadãos de direitos.
A ausência de regulamentação posterior a LOAS e demais normativas nacionais levou a uma operacionalização desorganizada dos benefícios eventuais, mais identificada com ações sociais isoladas de caráter assistencialista e clientelista do que com uma política pública cuja centralidade é o Estado (união, estado e município). Dito em outras palavras, a falta de interesse em regulamentar os benefícios eventuais e aproximá-los do campo de direitos juridicamente reclamáveis (como o BPC) tem a ver com as vantagens obtidas nas ações paternalistas e eleitoreiras.
“A cesta básica é a água com açúcar na assistência social”
Ouvi esta frase da Profª. Aldaísa Sposati em um espaço de formação que participei e imediatamente concordei e até me lembrei de momentos que, inconscientemente, também utilizei este “chazinho” nos atendimentos do famigerado “plantão social”. Ou seja, a afirmação é que a cesta básica é usada como um “calmante” quando não sabemos como lidar com as situações que emergem no cotidiano da prática profissional no SUAS, mas queremos amenizar de alguma forma o sofrimento do cidadão. Assim, a resposta do poder público para diferentes demandas é sempre a mesma: provisão de alimentos, isso quando há resposta, o que acaba por maquiar as reais desproteções sociais e violações de direitos existentes.
Como a demanda se apresenta, por vezes, complexa, a concessão de cesta básica parece aliviar e confortar as adversidades vividas. Como o Estado se propõe a ser mínimo para a área social, prover alimentação, enquanto indispensável para a sobrevivência humana, parece ser o lenitivo necessário para que o indivíduo supere por si só a situação vivenciada. Por vezes, o que se observa é uma provisão pontual, isto é, o cidadão não é acompanhado ou mesmo encaminhado em suas necessidades aos serviços socioassistenciais complementares e necessários.
(BOVOLENTA, 2017, p.509)
Diante desta reflexão, é incoerente a reclamação de que os usuários só aparecem na assistência social atrás de cestas básicas, mesmo isso sendo um fato, porque se analisarmos bem, a mínima presença do Estado na vida de grande parte dos pobres historicamente foi esta: provisão de alimentos, sem demais serviços integrados. Já ouvi histórias de sorteios de cestas básicas para que os usuários participem de reuniões e depois querem reclamar quando eles aparecem no CRAS pedindo alimentos? Penso que temos que adotar um olhar crítico sobre as ofertas de serviços e benefícios públicos, antes de afirmarmos que os usuários não aderem às ações. E o poder público aderiu aos serviços, programas e benefícios de assistência social? E nós profissionais, de fato aderimos ao modelo do sistema proposto?
Cesta Básica é mesmo um benefício eventual?
Outro ponto importante e que nos faz pensar é se uma necessidade contínua de uma família à alimentação pode ser considerada eventual, baseada no conceito de vulnerabilidade temporária ou pontual. Acredito que não. Pois, se afirmamos, com tanta convicção, que são as mesmas famílias que sempre solicitam a cesta básica na prefeitura, não se trata de uma vulnerabilidade passageira, mas sim de vulnerabilidade social ou de situação de pobreza que é reflexo do contexto social, econômico, político e cultural do país e que não se resolve rapidamente, por ser uma condição estrutural e não um episódio específico. Desta forma, lidar com uma necessidade permanente como se fosse esporádica é uma forma de eximir o Estado de suas responsabilidades. Bovolenta (2017) deixa claro que devemos conhecer estas diferenças:
Vale a pena pontuar que uma situação de vulnerabilidade social é diferente de uma situação de vulnerabilidade temporária, associando a primeira com a ideia de condição e a segunda como um evento, um fato. No caso dos benefícios eventuais, estes não são provisões perante a vivência contínua de vulnerabilidade, ainda que essa possa também acarretar episódios inesperados que requeiram provisão e proteção estatal (…). Mesmo porque o enfrentamento e a superação da situação de vulnerabilidade social precisam contar com um campo de proteção social mais amplo e estruturado, composto por bens e serviços materializados por meio dos programas, projetos, benefícios e equipamentos das várias políticas públicas.
(BOVOLENTA, 2017, p.523)
Dito isso, o questionamento que faço é: se as modalidades de benefícios eventuais são natalidade, funeral, vulnerabilidade temporária e calamidade pública[iv], aquela cesta básica mensal se caracteriza em qual benefício eventual? Nenhum. A alimentação diária, as cozinhas comunitárias, os restaurantes populares, programas de aquisição de alimentos fazem parte da política de segurança alimentar e nutricional e não da assistência social, assim como, medicamentos, órteses, próteses, óculos, dentaduras e leite são da saúde[v], as bolsas de estudo, material e transporte escolar são da educação, as isenções de IPTU são da habitação, entre outros.
Ressalto que estas áreas citadas possuem suas especificidades e atribuições próprias não dependendo do crivo da área da assistência social para as suas ofertas e provisões, nem mesmo através de triagens e avaliações socioeconômicas de profissionais lotadas/os na assistência social. Estas áreas devem contar com equipes próprias. É sabido que na grande maioria dos municípios e estados não há secretaria de segurança alimentar e nutricional estruturada e em muitos casos, as equipes se dividem em mais de um setor da prefeitura, mas, é preciso ficar claro nos planos estaduais, municipais, diagnósticos locais e constar nos demais documentos oficiais estas necessidades específicas. Ademais, a constatação destas ausências responde a pergunta inicial deste texto sobre a forma que o poder público trata a alimentação. Ora, se houvesse o reconhecimento da alimentação adequada enquanto um direito intrínseco à condição humana, já teria sido assegurada nas diferentes esferas, e não somente na união, área própria para garantir o acesso a este direito.
O caminho sempre deve ser pela órbita de direitos
Considero inconcebível que em pleno 2018 ainda existam famílias que não tenham alimentação saudável em casa e delegar a/ao profissional do SUAS, sobretudo a/o assistente social, a escolha dos mais miseráveis para serem atendidos diante desta necessidade chega a ser cruel, além de criar, no trato dos benefícios eventuais, “uma relação perversa e desumana entre o profissional e o usuário, muito longe de uma relação cidadã” (Bovolenta, 2017). Na realidade, estamos sendo demandadas/os a seletivizar ainda mais o gasto social com a assistência, a diminuir as despesas públicas, a focalizar e burocratizar os procedimentos, quando deveria ser o contrário, já que as necessidades estão ampliadas face a crise política e econômica instalada no país.
Contudo, mesmo diante de todas estas afirmações, a pretensão maior deste texto não é fazer profissionais do SUAS odiarem a entrega da cesta básica na assistência social, mas sim reconhecerem esta provisão como um direito fundamental do ser humano. Mesmo entendendo que se trata de uma oferta específica de outra área, isso não nos dá o direito de dificultar o acesso das pessoas aos alimentos adequados à subsistência humana, tampouco concordar com a entrega de formas de sustento que nós mesmas/os não consumiríamos.
Penso que nossa relação com a entrega de cestas básicas deve estar pautada na responsabilidade, no respeito e na qualidade do que está sendo ofertado, por exemplo, já refletimos nas reuniões de rede se a composição da cesta básica em nosso município garante a alimentação da família por um tempo ou a proposta continua sendo aquela de ofertar a cesta básica em meses intercalados para que a família não se acomode com a situação?
Realizar triagens no âmbito da assistência social (política pública) para a paróquia da cidade distribuir cestas básicas aos pobres (caridade) ou arrecadar alimentos e materiais em campanhas (caridade) para depois repartí-los como se fossem “boa” ação da prefeitura (pública) é endossar a expressão de ajuda, benevolência e favor que tanto criticamos e que distancia do reconhecimento da atenção enquanto dever estatal e direito do cidadão. Ora o que é caridade não é obrigação, não dá continuidade, não é profissionalizada, não se faz com dinheiro público…
É muito importante que façamos o planejamento de nosso trabalho na assistência social. Os objetivos claros do trabalho devem estar sempre em mente e precisamos construir indicadores, por isso é necessário preencher os instrumentos oficiais de dados, não podemos nos furtar deste trabalho, mas que importância tem a quantidade de grupos ou ações comunitárias que realizamos se não estivermos alcançando as reais necessidades das famílias atendidas?
Nós, trabalhadoras/es do SUAS, devemos facilitar o acesso das/os beneficiárias/os à cesta básica com a recusa de participação de processos de comprovações complexos e vexatórios de pobreza, a legislação nos respalda quanto a isso. Ao invés de ocuparmos a maior parte de nosso tempo de trabalho com atividades burocráticas e rotineiras de fiscalização, averiguação e controle de famílias, precisamos conhecer, defender e negociar com as nossas instituições empregadoras e nos espaços de participação existentes, os interesses das/os usuárias/os, além de, é claro, a nossa valorização profissional e a qualificação de nossas ações. Se isto ainda não é feito, sinto muito, mas temos apenas um emprego e não um trabalho no SUAS.
Neste contexto atual de perda diária de direitos, de desmontes das políticas minimamente organizadas, temos de nos posicionar como defensores do acesso aos direitos não só os da assistência social, mas os de saúde pública, de educação de qualidade, de alimentação digna e saudável, entre outros. O nosso norte deve sempre ser o alargamento da proteção social, a expansão e qualificação das ofertas e isso inclui a regulamentação dos benefícios eventuais, por isso precisamos falar sobre a cesta básica:
Neste sentido, regulamentar e demarcar o campo de atenção que compreende os benefícios eventuais da política de assistência social é parte integrante de fortalecimento do SUAS e do reconhecimento do direito socioassistencial. Os imbróglios vivenciados neste campo são inúmeros e trazê-los para a pauta do dia permite contribuir para seu reconhecimento e tratamento em consonância com as legislações vigentes.
(BOVOLENTA, 2013, p.283).
Referências bibliografias
BOVOLENTA, Gisele Aparecida. Cesta básica e assistência social: notas de uma antiga relação Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 130, p. 507-525, set./dez. 2017.
__________ Gisele Aparecida. Os benefícios eventuais junto à política de assistência social: algumas considerações. O Social em Questão – Ano XVII – nº 30 – p. 273 – 286. 2013
Notas
[1] Assistente Social, Servidora Pública e Diretora Técnica I do Núcleo de Avaliação e Supervisão da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social – Diretoria Regional de Assistência e Desenvolvimento Social – DRADS Franca/São Paulo. Colabora esporadicamente com o Blog Psicologia no SUAS
[i] Relatório sobre Levantamento Nacional de Benefício Eventual de 2009, do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS). Censos Suas de 2010 a 2014;
[ii] A alimentação passou a ser reconhecida como um direito fundamental. Emenda Constitucional n. 64/2010); Lei n. 11.346, construção do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN);
[iii] GECCATS https://www.facebook.com/geccats.dradsfranca
[iv] Decreto nº 6.307/2017 e Resolução CNAS 212/2006;
[v] Resolução CNAS 39/2010;
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