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Por Tatiana Borges*
Nestes tempos em que o óbvio precisa ser dito, tenho sentido a necessidade de provocar uma reflexão sobre os direitos humanos e a política de assistência social, sem, é claro, qualquer pretensão de esgotar um tema de tamanha complexidade e que na realidade nem me parece tão óbvio assim. O fato é que muito se tem dito de direitos humanos, no senso comum, na parcela retrógada da sociedade e nas redes sociais o termo aparece de forma pejorativa, carregado de distorções, mas e em nosso meio, entre nós profissionais das áreas humanas, técnicas/os do Sistema Único de Assistência Social – SUAS, como estas questões têm sido difundidas? Trabalhamos com uma política que visa garantir direitos e como falamos de direitos para os nossos usuários e usuárias? Direitos sociais e civis estão descolados dos direitos humanos? Vislumbramos a assistência social como direito? Estamos mesmo falando em direitos?
Este texto é um convite para pensarmos nestas indagações e começo deixando claro que, a meu ver, o nosso lugar de fala não nos permite a acomodação do senso comum, tampouco a repetição das falácias que têm sido ressaltadas por aí como, por exemplo: “direitos humanos para humanos direitos”, “direitos humanos só serve para bandidos”…, mas, por que não podemos reproduzir o que todos falam?
Primeiro por que falar em direitos humanos na contemporaneidade significa falar em direito de ser pessoa, de se constituir como gente, sem desassociar uma classe de pessoas de outra classe, como se uma classe de pessoas fosse ‘do bem’ e considerada portadora de direitos e a outra classe, ‘a do mal’, não tivesse dignidade. Desta forma, toda pessoa, por ser humana, deve contar com os direitos humanos, que na verdade são um conjunto de direitos. Nas palavras de Hanna Arendt “temos direito a ter direitos” e isso nos remete aos princípios da igualdade e equidade e ao pressuposto constitucional de que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (art. 5º).
Segundo por que não existe divergência entre a defesa dos direitos humanos e o combate à criminalidade, muito pelo contrário, é justamente por se incomodar com a criminalidade que se defendem direitos, dentre eles o da segurança pública. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 3º) diz que: “Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”, veja só os direitos humanos se associa à segurança, portanto não são coisas destoantes.
A despeito da imensa literatura sobre direitos, o texto de Ramon Kayo “Ninguém é a favor de bandidos, é você que não entendeu nada” aborda esta questão da infeliz associação de direitos humanos com ‘defesa de bandido’ de uma forma bem didática, recomendo a leitura e destaco o trecho que evidencia que não é infringindo os direitos humanos que se diminui o número de marginais:
“É confuso que o cidadão que clama tanto por justiça, que a lei seja cumprida, fique ávido para descumpri-la: tortura, homicídio e ameaça são crimes, mesmo que sejam contra um condenado. Então, não, bandido não tem que morrer, porque isso te tornaria tão marginal quanto (…) ninguém quer que os bandidos sejam especiais: o que o ‘povinho dos Direitos Humano’ quer é que a sociedade não crie mais marginais e que a quantidade dos existentes diminua” |
Assim, é por acreditar que a negação de direitos básicos traz consequências que afetam a vida de todas as pessoas e por saber que o modo como nos relacionamos em sociedade possui raízes na estrutura social, econômica, política e cultural do país e do mundo que se defendem direitos, individuais e coletivos, a todos e a quem deles necessitar.
Efetivamente, não pretendo aprofundar neste espaço o debate sobre criminalidade, mas considero imprescindível conectar as demandas de nosso trabalho no SUAS, sobretudo as demandas dos usuários que atendemos, à realidade social mais ampla e esta realidade inclui o debate sobre os direitos humanos, direitos estes construídos historicamente com a influência internacional e que são entendidos como uma unidade indivisível, interdependente, inter-relacionada e de alcance universal.
Os direitos humanos no SUAS
Além do fato da assistência social ter como uma de suas funções a defesa e garantia dos direitos, a afirmação que nós, trabalhadoras/es do SUAS, somos ou deveríamos ser defensoras/es de direitos humanos faz sentido se atentarmos para a própria Política Nacional de Assistência Social – PNAS 2004 que coloca o SUAS como um dos sistemas que defende e promove direitos humanos:
“São princípios organizativos do SUAS: articulação interinstitucional entre competências e ações com os demais sistemas de defesa de direitos humanos, em específico com aqueles de defesa de direitos de crianças, adolescentes, idosos, pessoas com deficiência, mulheres, negros e outras minorias; de proteção às vítimas de exploração e violência; e a adolescentes ameaçados de morte; de promoção do direito de convivência familiar; ” (p 88). “A atenção às famílias tem por perspectiva fazer avançar o caráter preventivo de proteção social, de modo a fortalecer laços e vínculos sociais de pertencimento entre seus membros e indivíduos, para que suas capacidades e qualidade de vida levem à concretização de direitos humanos e sociais” (p 90). |
Na NOB SUAS 2012 também aparece a defesa da dignidade da pessoa humana, como princípio ético para a oferta da proteção socioassistencial no SUAS. Defender a dignidade da pessoa humana é defender direitos humanos, o que inclui a defesa incondicional da liberdade, da privacidade, da cidadania, da integridade física, moral e psicológica. (Art. 6º).
Ao analisar as categorias profissionais que compõem o SUAS a ligação com os direitos humanos é revelada em praticamente todos os códigos de ética que disciplinam as áreas de saber integrantes deste sistema:
Assistente Social:
“Defesa intransigente dos direitos humanos e recusa do arbítrio e do autoritarismo”. (Princípios Fundamentais). Psicóloga/o: “O psicólogo baseará o seu trabalho no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, apoiado nos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos. ” (Princípios Fundamentais). Advogada/o: “O advogado, indispensável à administração da Justiça, é defensor do Estado Democrático de Direito, dos direitos humanos e garantias fundamentais, da cidadania, da moralidade, da Justiça e da paz social. ” (Art. 2º). Pedagoga/o: “O exercício da profissão de Pedagogo pautar-se-á: (…) na definição de suas responsabilidades, direitos e deveres de acordo com os princípios estabelecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos. ” (Art. 1º). Terapeuta ocupacional: “O terapeuta ocupacional avalia sua capacidade técnica e somente aceita atribuição ou assume encargo quando capaz de desempenho seguro para o cliente/paciente/usuário, família/grupo/comunidade, em respeito aos direitos humanos. (Art. 5º). Socióloga/o “O sociólogo tem o compromisso de opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos do Homem” (Art. 6º) |
O quadro acima autoriza reafirmar o título deste texto: o ‘povinho dos direitos humanos’ está mesmo no SUAS!
Não basta reconhecer os direitos é preciso materializá-los
Não há como garantir a dignidade humana sem oferecer condições materiais necessárias à sobrevivência e isto associa os direitos humanos aos direitos sociais, econômicos, civis e culturais. As políticas públicas se constituem na forma mais atual de materializar direitos e, por isso, são também direitos. E a conquista destes direitos é um desafio cotidiano que deve envolver toda a sociedade com os valores da democracia.
Nesta lógica, a assistência social se configura como um direito e é responsável por materializar direitos e não apenas por apontá-los. Sabemos que hoje a assistência social possui seu campo próprio de atuação, devendo assegurar direitos traduzidos em seguranças sociais para satisfazer as necessidades básicas humanas como: renda (programas de transferência de renda, benefício de prestação continuada e benefícios eventuais), acolhida (serviços de acolhimento em abrigos, repúblicas, residência inclusiva, casa de passagem, entre outros) e o convívio.
As seguranças de renda e acolhida são palpáveis, conseguimos identificá-las, defendê-las e reconhecer que elas devem ser ampliadas com ofertas mais diversificadas e efetivas de serviços e benefícios para que haja a garantia de condições mínimas de sobrevivência em meio à gritante desigualdade social que nos assola. No entanto a segurança de convívio, que está no campo da prevenção, ainda é um desafio para nós que trabalhamos e realizamos a gestão do SUAS e o que a segurança de convívio tem a ver com os diretos humanos?
Se quisermos efetivar o direito ao convívio temos de reconhecer que alguns vínculos familiares e comunitários podem ser fragilizados ou rompidos por discriminações e preconceitos que resultam em conflitos, violência, abandono, isolamento e apartação. Chamamos estas situações de vulnerabilidade relacional.
A prevenção no âmbito do SUAS deve se atentar para os tipos de relações e convivências que tornam as pessoas mais vulneráveis e desprotegidas e é justamente esta defesa dos grupos mais vulneráveis que nos identifica com o ‘pessoal dos direitos humanos’.
Sendo assim, o machismo, a misoginia, o racismo, a intolerância religiosa, a LGBTfobia, a xenofobia, o adultocentrismo, o preconceito contra idoso (ageísmo), a discriminação contra a pessoa com deficiência (capacitismo), contra os desempregados, analfabetos, pobres, pessoas em situação de rua, entre outros fazem parte do nosso cotidiano e são questões que trazem sofrimento para as pessoas e, portanto, devemos trabalhá-las fortemente nos serviços do SUAS. Não somos nós que dizemos que vulnerabilidade social não é só uma questão de renda? Pois bem, e por que ainda vemos tantos CRAS, lócus privilegiado da prevenção, reunir mais esforços em comemorações de datas criadas para o consumo, em prejuízo do calendário dos direitos humanos que procura vincular a garantia da convivência com as lutas por reconhecimento social?
No último mês, por exemplo, tivemos datas expressivas para os direitos humanos (Dia Mundial de Conscientização da Violência contra a Pessoa Idosa/Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil) e como estes temas foram trabalhados no SUAS? Iniciativas que dão visibilidade a estas datas, sem esvaziar o seu real significado, não se configuram em uma das formas legítimas de se falar em direitos com a população?
Conforme dito antes, este texto traz mais questionamentos que respostas. No entanto, como faço parte daquele grupo de pessoas que acredita que a vida humana só faz sentido se houver possibilidades de construções e reconstruções e que é na resistência que se transforma a realidade, encerro estas indagações com as palavras de Valeria Forti e mais uma vez com a graça do personagem Armandinho.
“…entendemos que trabalhar em prol da defesa, da efetivação e ampliação desses direitos (…) significa apreciá-los e efetivar ações profissionais competentes e compatíveis com concepção ampla que tem como referência todos os afetados pelas violações dos direitos (…) significa termos a compreensão de que — sem desconsiderarmos os limites, ou melhor, sem abstrações — a materialização dos Direitos Humanos na sociedade de classes pode ser caminho para o que ainda precisamos alcançar se pretendemos liberdade real, igualdade de fato e fraternidade na prática.”
Referências Bibliográficas:
– KAYO, Ramon. Ninguém é a favor de bandidos, é você que não entendeu nada. Disponível em: https://awebic.com/democracia/ninguem-e-a-favor-de-bandidos-e-voce-que-nao-entendeu-nada/
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BAIXAR texto em .pdf: Cadê o pessoal dos direitos humanos
—*Tatiana Borges é colabora do Blog Psicologia no SUAS! Saiba mais sobre Tatiana AQUI e para os outros textos: AQUI
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