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Feliz Gestão Nova: o SUAS convida a uma Psicologia neutra?


Por Lívia de Paula

“Ano Novo, Vida Nova.” Para muitos de nós, trabalhadores do SUAS, essa frase poderia ser reescrita neste momento assim: Ano Novo, Gestão Nova. Vários municípios vivenciam neste início de mandato inúmeras mudanças que trazem consigo sentimentos por vezes contraditórios: esperança na renovação, medo das transformações e angústias frente às reconfigurações dos serviços. Para aqueles que chegam no campo da Assistência Social, os sentimentos podem ser outros: receio diante do novo, sensação de estar perdido diante do famoso “caí de paraquedas nesse trabalho”, sentimento de não pertencimento e a nossa velha conhecida crise de identidade profissional. Surgem vários questionamentos como: existe algum trabalho para Psicologia no SUAS? O que é ser psicóloga / psicólogo?  E a mais famosa pergunta: o que farei eu, profissional da Psicologia, nesse espaço não clínico?

Durante todo o mês de Janeiro, o Blog trouxe textos já publicados anteriormente que podem ser ferramentas importantes para nos auxiliar nesta etapa de transição. Se você ainda não leu, vale consultar esta Retrospectiva nos arquivos do Psicologia no SUAS. Terminei 2016 escrevendo sobre nossa atuação com famílias e tinha como pretensão continuar refletindo sobre este tema, mas o momento político dos municípios me convidou a “recalcular minha rota”. Preferi dar Feliz Ano Novo trazendo um tema polêmico, que divide opiniões, mas que considero imprescindível para quem atua no SUAS e nas demais políticas públicas: a questão da neutralidade profissional no contexto da Assistência Social. Você, profissional do SUAS, calouro ou veterano, já pensou sobre isto? O que é neutralidade? O que é ser neutro no âmbito das práticas sociais?

Consultando o Dicionário Michaelis On-line[i], encontramos os seguintes sentidos para neutralidade: “condição daquele que se abstém de tomar partido; caráter ou qualidade do que é imparcial.” Já entre os sentidos para a palavra neutro, encontramos alguns bastantes interessantes: “que não apresenta clareza ou definição; indefinido, vago; desprovido de sensibilidade; indiferente, insensível.” Sendo estas as compreensões mais frequentes destas palavras, consultamos as diretrizes da Política de Assistência Social para encontrar apontamentos que orientam nossa atuação enquanto operadores da Política, buscando compreender como tais apontamentos se relacionam com o que nos indicam as palavras citadas.

 A NOB-RH/SUAS, em seus Princípios éticos para os trabalhadores da assistência social, começa dizendo o seguinte: “A Assistência Social deve ofertar seus serviços com o conhecimento e compromisso ético e político de profissionais que operam técnicas e procedimentos impulsionadores das potencialidades e da emancipação de seus usuários;” (p.19). Mais à frente, o documento coloca como um dos princípios éticos dos trabalhadores “a defesa intransigente dos direitos socioassistenciais”.[ii] Poderíamos elencar aqui várias outras orientações presentes nos documentos que regem o funcionamento do SUAS mas apenas estas já nos auxiliam muito na tarefa de problematizar o tema do nosso texto.

Já sabemos que neutralidade e neutro são palavras que indicam o não posicionamento, uma certa indiferença, o que não está claro ou definido. E também já sabemos o que a Assistência Social exige de seus técnicos: somos profissionais impulsionadores de potencialidades e emancipação da população; somos profissionais de reconhecimento, defesa e garantia de direitos. É possível defender direitos sendo indiferente, vago e insensível?  A compreensão mais comum de que a ciência deva ser neutra, produzindo conhecimento sobre determinado fenômeno sem se relacionar com ele é colocada em xeque no território das práticas sociais. Segundo Branco (1998), “a ciência psicológica, no estágio atual, exige pesquisa, extensão e ensino reflexivos, críticos e engajados.” Fica claro que não há neutralidade que caiba no SUAS. Não há para onde correr. O SUAS é um campo para quem se posiciona. É um campo para quem “enxerga” as vulnerabilidades e as fragilidades daqueles que, na maioria das vezes não tem vez e voz, em especial dos chamados grupos minoritários (negros, mulheres, crianças e adolescentes, população LGBT, pessoas com deficiência, entre outros).

E como fazemos, nós da Psicologia, diante desta constatação? Nós que aprendemos tão bem a sermos neutros? Está posto o conflito e talvez a nossa grande crise ao adentrarmos o SUAS. Eu faço o que com aquela psicóloga ou psicólogo que ia ser? Aquela que ia ficar atrás da mesa ou ao lado do divã, sem precisar explicitar suas posições? Sugiro uma conversa honesta entre você e aquela pessoa que você se imaginava. Talvez você pode descobrir que o trabalho pautado na psicologia social não é bem a sua. Ou talvez não. Talvez você descubra que há outras formas de ser psicóloga ou psicólogo, nas quais o posicionamento é indispensável. E aí, colega, bem-vinda ao SUAS. No atual cenário político do país, no qual vemos ruir direitos todos os dias, estamos cada vez mais precisados de profissionais intransigentes na defesa e na luta por justiça social.

Vamos refletir mais sobre Neutralidade e Psicologia? Os textos sugeridos falam sobre formação dos profissionais psicólogos e sobre nossa atuação no espaço clínico, mas podem auxiliar nos questionamentos sobre a prática da Psicologia em qualquer espaço:

Cabe ainda uma última reflexão que pode contribuir para que você queira estar conosco na empreitada do SUAS. Para dar conta desta tarefa de defesa de direitos não podemos trabalhar isolados. Na última reunião da Comissão das Psicólogas (os) do SUAS da Subsede Centro Oeste do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais, l Assistência Social exige participação e discussão coletiva. Se você está chegando agora ou já é velho de casa não importa. Pense na sua participação. Ela é uma das formas de nos ajudar na construção da nossa identidade enquanto trabalhadores. Há muitas maneiras de se apropriar, de dividir angústias pertinentes às nossas tarefas, de se informar, de contribuir para o fortalecimento da política: procure os fóruns de trabalhadores estaduais ou municipais, os conselhos de direitos da sua cidade, os grupos de discussão, estudo e trabalho, os grupos das redes sociais, enfim… Posso dizer sem medo que existe uma Psicologia possível no SUAS. E espero que, você, caro colega, permita-se conhecê-la. Mas prepare-se para uma viagem para fora da caixinha. A assistência social é um espaço de luta. Luta que se dá principalmente “na rua, na chuva, na fazenda…” Ou nas “casinhas de sapê”, nas quais funcionam os mais diversos equipamentos da Política de Assistência Social. Feliz Ano Novo, Feliz Gestão Nova para todos nós!

[i] michaelis.uol.com.br Acesso em 15/01/2017

[ii] A NOB-RH/SUAS pode ser acessada AQUI 

Para ler os demais textos da Lívia Clique AQUI e para ler o seu currículo, clique aqui.

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7 respostas para “Feliz Gestão Nova: o SUAS convida a uma Psicologia neutra?”.

  1. Avatar de Ruana Soares
    Ruana Soares

    Ótima reflexão. Sou uma recém chegada na Assistência e o blog tem sido uma ótima fonte de conhecimento, informação e reflexão. A questão da neutralidade, da forma como foi colocada, é de fato um desafio para todos nós trabalhadores do SUAS. Mas, mais do que nunca é preciso que nos posicionemos e que exerçamos, de fato, a função para a qual somos remunerados.

    Curtido por 1 pessoa

  2. Avatar de Antonio Ronaut
    Antonio Ronaut

    Eu entendo a neutralidade na Assistência Social como uma abertura do propfissional para receber as pessoas, suas necessidades. Só faz sentido ser neutro assim (no meu entendimento), pois a partir desta neutralidade que é possível impulsionar as pessoas a alcançar o seu melhor, dentro do que é possível.

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    1. Avatar de Lívia de Paula
      Lívia de Paula

      Concordo com você Antônio. Esta, inclusive, foi uma das dúvidas que tive ao escrever o texto. Porque esta neutralidade é sim muito importante. Um abraço, obrigada!!

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  3. Avatar de Lívia de Paula
    Lívia de Paula

    Oi Carlos Denis,
    Mais uma vez obrigada pela rica interlocução e por este comentário tão agregador. Nossa gênese é normativa não é mesmo? Longo caminho a se percorrer!! Mas o importante é que estamos na estrada! Grande abraço!

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  4. […] o Dicionário Michaelis On-line[i], encontramos os seguintes sentidos para neutralidade: “condição daquele que se abstém de tomar […]

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  5. Avatar de Carlos Denis de Campos Pereira

    Olá Lívia,
    Gostei muito do seu artigo! Contribuindo, um pouco, para uma interlocução, eu diria que socialmente, a PSICOLOGIA nunca foi e nunca será neutra. Na perspectiva de Foucault, em diversos livros e textos, ele demarca isso muito bem. Vejamos no caso da PSICOLOGIA (diversas teorias e técnicas) em seu livro AS PALAVRAS E AS COISAS: a PSICOLOGIA tem uma função social bem definida na genealogia da sociedade moderna (atual). Seria uma “função normativa”. Por aí entendemos o que significa ser “neutro”: é ser normativo. Estabelecer padrões aceitáveis, dizer o que é normal e anormal e por aí vai. Temos os nossos consultórios, os nosso testes psicológicos (de uso exclusivos), os nossos diversos saberes e olhares, que em uma análise histórica, trata-se de um “saber normativo”.
    Vejamos um exemplo prático, através de duas situações, em cima dos conceitos que você destacou: “[…] procedimentos impulsionadores das potencialidades e da emancipação […]”.
    1) Situação comum: um aluno, de uma escola muito autoritária, é atendido pela psicopedagoga e recebe o diagnóstico de hiperatividade e déficit de atenção; ele foi encaminhado ao médico para medicação com a “Rita Lina” e à psicóloga para psicoterapia de apoio individual e familiar. Continuará com atendimentos com a psicopedagoga também.
    2) Situação não comum: tendo em vista a cultura autoritária da escola, o coletivo escolar construiu um novo projeto político-pedagógico para a escola autoritária. Depois de colocado em prática, verificou-se que a escola deixou de ter um clima autoritário e agora está bastante democrática, com os professores desenvolvendo diversas disciplinas coletivamente, através de projetos interdisciplinares, com muita participação dos alunos, das famílias e da comunidade. Agora, a escola é considerada uma “escola feliz, alegre e gostosa”. Não há encaminhamentos de alunos com problemas de aprendizagem e de comportamentos inadequados à psicopedagoga, ao médico e à psicóloga.
    Enfim, diante das duas situações, qual o modelo de psicologia é “impulsionador das potencialidades e da emancipação”?
    Como conversar isso com meus “colegas psi”, que ganham dinheiro com a “função normativa”? Como discutir isso em um Conselho Profissional? E os nossos testes exclusivos? Eles irão me interrogar: Você ficou louco?! Quem sabe eu serei encaminhado à Rita Lina e ao psicanalista?
    Só existe uma solução: temos que ser NEUTROS! Por isso o SILÊNCIO que é a característica mais presente da psicologia na atualidade diante da política e da geopolítica.
    Citação de Foucault: “No entanto, pode-se dizer, de maneira global, que a psicologia é fundamentalmente um estudo do homem em termos de FUNÇÕES E DE NORMAS (funções e normas que se podem, de maneira secundária, interpretar a partir dos conflitos e das significações, das regras e dos sistemas) […]”. (FOUCAULT – AS PALAVRAS E AS COISAS, 1966, pág. 494 do livro ou pág. 382 do documento em pdf).

    Clique para acessar o foucault-michel-as-palavras-e-as-coisas-digitalizado.pdf

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Comentários